Sintomas de uma esquerda ensimesmada

Democracia em Vertigem, de Petra Costa, mostra uma desgastada narrativa: perdidos em eterna autorreferência, muitos não percebem as brechas na democracia. É preciso enxergar além — e há uma chave para isso em pequena cena do filme

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Assistir Democracia em Vertigem com atenção de quem resiste (mais uma vez, e de novo) à narrativa hegemônica de uma certa esquerda, aquela que nos inebria (de novo, e mais uma vez) com mitos caducos e desgastados de mocinhos e bandidos é tarefa urgente. Assim como é urgente transformar a crítica em exercício que coloca narrativas em movimento, que suspendem e chacoalham mântras e fantasmas ideológicos que já não dão conta (se é que algum dia deram) do processo político-social no Brasil.

Logo que terminei de ver o filme, caiu no meu colo o fragmento do crítico de cinema A. O. Scott e que diz:

“Petra não produziu um trabalho de jornalismo objetivo ou de estudos acadêmicos, mas uma avaliação pessoal do passado e do presente de sua nação. Democracia em Vertigem é narrado em primeira pessoa, pela própria cineasta em uma voz que é, por sua vez, incrédula, indignada e autoquestionadora”.

Mas com muito alívio, a pergunta de um outro crítico chamado Marcelo Ikeda, caiu nas minhas mãos, ele pergunta: “A quem esse filme se destina?” e eu continuo gritando pra tela do computador “E por quem a história é narrada?”

Scott talvez tenha razão, não se trata de um trabalho pautado pelo jornalismo objetivo, nem por estudos acadêmicos, e fica clara a intenção da Petra em traçar uma narrativa pessoal que avalie o passado e o presente “de sua nação”. Mas ela deixa a desejar, principalmente na tarefa de criar dinâmica entre o pessoal e o político. É exatamente nessa brecha — entre o pessoal e o político – que o caráter “autoquestionador” da diretora parece se anular. Petra narra sob o ponto de vista dela que é o de uma classe média alta. Nem bom nem ruim. É ela vendo a história acontecer. Mas é ela vendo a história acontecer a partir de tal classe social. E nesse sentido, a narrativa que assisto não é uma reflexão autoquestionadora mas sim autorreferente, não só a si mesma, mas a uma classe social que compõe uma certa elite cultural no Brasil. Perceber a falta de autoquestionamento em sua narrativa é como perceber o narcisismo inerte e apático de uma classe social ensimesmada, da qual faço parte. Enquanto assistia o filme, fazia o exercício — quase que psicanalítico — de entender que em todos os momentos que minha identificação escorregava e se rendia à isca melodramática era porque eu estava — na verdade — me identificando com o espelho de uma classe autorreferente, que replica a si mesma, inclusive a maneira de subjetivar e narrar a percepção da realidade, uma bolha cognitiva.

Ao contrário de Scott, não escuto no tom da voz da narradora “indignação” e “incredulidade”, escuto uma pessoa descolada de muitos fatos, que observa atônita os rumos da democracia burguesa, a voz de um sintoma da esquerda que insiste em achar que a democracia está ameaçada agora. A diretora revela o olhar sintomático de uma classe que parece sempre observar a realidade de cima, de fora, quase que imune, mesmo que crítica, identificada com a esquerda progressista e afetada pelos dramas e laços familiares, uma flaneur de drone. Quando Petra parece se implicar, colocando sua própria biografia em diálogo com o cenário político, a tentativa de autoquestionamento se enfraquece ainda mais. Ela tenta construir uma personagem de si mesma traçando, ao longo de sua própria biografia, paralelos com a história política do país. Mas o fato é que a autobiografia da cineasta não dá conta da histórica turbulência político-social do Brasil, ou pelo menos não da maneira como ela escolheu contar. Expor as relações atávicas entre pessoas da classe dominante no Brasil é dizer o óbvio em uma sociedade onde o privilégio é sistêmico e estrutural. A maneira como ela busca alinhavar relações entre sua própria biografia e o processo da democracia não consegue superar a construção de um retrato pessoal, individualizado, privado e protegido por privilégios. Ou seja, fala-se muito de Petra e a história de sua família e pouco de seu lugar de classe.

Fiquei na expectativa de um autoquestionamento que fosse além da denúncia en passant de uma família que representa o atávico baronato do país. No final ela fala de um “nós”. Ela diz algo do tipo “Será que vamos conseguir nos levantar dos escombros e criar algo novo?” Ou seja, de alguma forma ela se coloca como lugar de fala do cidadão Brasileiro abatido e que precisa se levantar. É como se ela estivesse dizendo “nós, brasileiros”. Mas quem é esse “nós”? Quem é o sujeito que (só) agora, com impeachment de Dilma, Lula preso e Bolsonaro no poder se questiona sobre a “vertigem” da democracia? A classe média alta. Petra parece se esquecer das muitas populações no Brasil que a todo momento — desde sempre — se levantam dos escombros. Os escombros são históricos. A pergunta no final do filme é sintomática. “(…) será que vamos conseguir levantar?” Ela evidencia que há uma classe que se percebe como centro, como referência, como lente de uma realidade que é mais complexa do que a sensibilidade muito bem paga pode compreender.

A narrativa política que ela escolhe é a narrativa hegemônica dentro de uma esquerda que sempre se quis hegemônica. Dizer que o Lula errou porque fez coalizões ou que a Dilma não prosperou porque era fria (não dava o tal abraço), ou seja, não tinha o jogo de cintura do Lula, é apostar em uma narrativa que dá conta de alguns elementos sobre as problemáticas dos governos PT, mas não de todos. Martelar nessas questões, como se demonstrando que o eleitorado Lula e Dilma conseguem problematizar seus governos, é quase que uma forma de driblar a urgente necessidade de olhar para as contradições da esquerda e não ter medo de imaginar outras esquerdas.

Em um documentário que se pretende falar sobre a democracia no Brasil não há quase questionamento sobre a democracia em si, ou sobre seus limites de classe, raça e gênero. Minto, há um momento em que tal questionamento finalmente aparece — aliás o momento mais marcante pra mim — quando Petra fala com uma das mulheres que limpa as escadas do Alvorada. A faxineira (adoraria saber seu nome, mas a diretora não pergunta, ou escolhe não colocar na tela). Aquela-mulher-sem-nome, faz um movimento emblemático em sua fala. Ela oscila entre o discurso da justiça contra a corrupção, já que Dilma é acusada e deve pagar, e o questionamento inevitável sobre o valor do voto já que a mesma presidenta foi eleita pelo povo. Ela demanda novas eleições e ao mesmo tempo se pergunta — enquanto senta na escada, descansa e repousa o pano de chão na perna — se há de fato democracia, se o voto garante a democracia e pra quem. Ali, imaginei que uma brecha pudesse se abrir, mas não. Petra segue na tentativa de alinhavar uma dinâmica entre a história da sua família e a da política no Brasil. A diretora passa batido pelo depoimento que mais denuncia a tensão (ou real vertigem) entre democracia e a luta de classes, mas não somente, ela passa batido pelo exercício de autoquestionamento que ela mesma não havia feito até então. O que aquela-mulher-sem-nome questiona não é somente a democracia em si, mas o discurso que ela mesma replica e sua autonomia reflexiva. O que assistimos nesse momento é alguém que percebe o abismo entre o discurso do senso comum e o exercício de leitura das contradições.

Não vale a pena discutir se o filme é bom ou não. Afinal de contas, se não superarmos a cultura do “like” seremos soterrados pela incapacidade crítica. Qualidade essa tanto desvalorizada pela direita quando usa o anti-intelectualismo pra enfraquecer o poder político da reflexão — quanto pela esquerda quando acusa as divergências narrativas dentro de seu próprio campo político de “intelectualismo de esquerda” ou de “espezinhar a esquerda” ou ainda de “fragmentar uma luta comum”. Aí está, mais um sintoma dos tempos, sintoma perigoso. Nas várias vezes que a esquerda abre debate dentro de si mesma pra que justamente possa ser muitas outras — é acusada de fragmentar ou enfraquecer uma narrativa que precisa a todo custo ser uníssona, seja ela pra gringo ver, ou pra brasileiro dormir.

Assistir Democracia em Vertigem deve superar o gosto estético ou a identificação ideológica. Questionar a importância desse trabalho também me parece pouco instigante. Petra Costa narrou uma história a seu modo, mesmo que esse apareça como narrativa já alinhavada por um discurso hegemônico. O filme foi feito, uma história saiu. Rever a história recente do Brasil, com todas as violências e abusos do poder político, jurídico e midiático é com certeza impactante, mesmo que orientado pela dinâmica de produção a la Netflix. O que me parece essencial é observar os sintomas que esse trabalho expõe como e por quem a história é contada e como nos identificamos com ela. Olhar pra brecha que Democracia em Vertigem não abre é olhar pro sintoma de uma esquerda no Brasil, seu ponto cego.

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3 comentários para "Sintomas de uma esquerda ensimesmada"

  1. Eduardo disse:

    Com todos os limites do documentário, a diretora acerta no esforço de levantar várias contradições que envolvem o processo que vai de 1988 até a eleição do atual presidente. Está fomentando um debate muito interessante a partir das críticas sobre o filme. Sinto tanto na fala faxineira anônima do Palácio da Alvorada como na condução da diretora contradições que indicam (espero eu) uma crítica que ainda está se desenvolvendo, ainda está em processo.

    O processo de autocrítica vai ser longo e doloroso. Mas é bom saber que ele já começou.

  2. Cristiano Simon disse:

    Síntese feliz e cirúrgica ao tratar do que chama de ponto cego da esquerda. Há muito bato na tecla do quanto na academia e na política somos ensimesmados ao falar para nós mesmos o que gostamos e gostaríamos de ouvir. Uma beleza o texto: crítica, sensibilidade e profundidade conjugagadas a serviço de uma reflexão mais preocupada com perspectivas e devir que com maniqueísmos e justificativas. Agradeço à autora pelo privilégio de poder ler algo tão especial!!

  3. JOSE FRANCO NUNES disse:

    As palavras de Veridiana Zurita são, disparado, a melhor crítica ao filme.

    Em uma época onde o óbvio necessita ser dito e o enxergar além ou mesmo entre o branco e o preto (talvez o cinza) não se faz comum, Veridiana mostra uma lucidez tão ofuscante a ignorância de quem lê e não enxerga o que há ali, gritando (mesmo que nas sutis palavras da jornalista) que não consigo ler sem me sentir incomodado não por suas palavras ou pela película analisada, mas pelas minhas próprias certezas.

    Em um país (seria mundo?) onde o jornalismo não passa de mais do mesmo ou mise-en-scène, Veridiana dá um fôlego orgulhoso a quem um dia sonhou fazer jornalismo e optou por outros caminhos.

    Só posso dizer muito obrigado e grande abraço!

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