Diário: Greve Geral do 14 de junho 2019

Um dia de conquistas parciais em meio a incertezas políticas.

Fotos: Alice Vergueiro

Saí de casa a pé e fui para a rua às 5h30 da manhã. Queria esta na cidade cedo e atingir se possível a estação Barra Funda do metrô. As primeiras horas da Greve Geral são cruciais, pois é quando ocorrem os bloqueios e quando a realidade das mobilizações dos trabalhadores do transporte pode ser avaliada. As expectativas eram grandes hoje, pois vínhamos em um crescendo de grandes e significativas mobilizações nas semanas passadas. Além disso, as explosivas revelações dos vazamentos do Intercept abalaram o cenário político, enfraquecendo o governo.

Logo vi que a estação Vergueiro do metrô estava fechada. Como era cedo, pouca gente na rua: vendedores armavam suas barracas, os funcionários do hospital a caminho do trabalho, soldados chegavam ao quartel da PM. Uma mulher de mochila passou resmungando alto: “Que palhaçada, mano!”.

Cheguei à estação São Joaquim do metrô e esta estava fechada também. Tinha gente de pé na calçada, esperando. Fiquei feliz, achando que os metroviários tinham de fato trancado o sistema, o que teria sido uma vitória e excelente início de dia. Mas quando cheguei à estação Liberdade, vi que os portões estavam sendo abertos. Desci à catraca e vi uns 5 funcionários do metrô do lado de dentro. Ia ter serviço parcial, o que tirou um pouco o brilho do dia.

Saí da estação para ir à Sé e vi um grupo de idosos japoneses fazendo seu tai-chi com seus bonés e agasalhos de nylon branco. Alcancei a catedral e entrei na estação do metrô. Tinha umas 50 pessoas do lado de fora da catraca, incluindo um pequeno grupo de africanos, e uns 10 funcionários do lado de dentro. Um quadro trazia aviso com detalhes do serviço hoje: todas funcionavam (exceto a linha Prata) parcialmente, mas excluíam terminais importantes nas extremidades. Chequei que na Linha Vermelha a estação Barra Funda não estava aberta. Esta é um terminal importante, com baldeações para ao trem da CPTM e ônibus urbanos, alcançando as periferias mais distantes.

Foto: Alice Vergueiro

Deu para ver que os ferroviários não aderiram à greve, o que lamentei. É verdade que há enorme pressão sobre os sindicatos do transporte, pois eles são o fiel da balança. Tem gente que formula que a cidade é a fábrica do presente. Parar o chão da fábrica não mais tranca a economia, que se diversificou. O lugar da produção teria passado à cidade, ou pelo menos à circulação de mercadorias. Então quem tranca a produção é o MPL, os caminhoneiros e motoboys.

Saí para checar o terminal Parque D. Pedro, esperando talvez trombar com alguma movimentação, talvez de sem-tetos no caminho. Lá, tudo calmo e normal. Eram já 6h30 e a cidade acordando. A população de rua despertando para sua miséria, o comércio formal e informal armando suas estruturas.

Subi a rua 25 de Março e depois a rua Porto Geral. Só um helicóptero da PM, parado em pleno ar, indicava que o dia era atípico – e a estação São Bento, que estava totalmente fechada.

Decidi voltar à Sé para tentar chegar à Barra Funda. Estava bem vazia, mas ouvia os trens em serviços nas plataformas debaixo da terra. Entrei no trem e sentei, mas tive que esperar uns 15 minutos até que o trem andasse, devagar. Algum tipo de operação tartaruga estava em andamento. Acabei descendo na Luz para pegar um trem até a Barra funda, já que o metrô não ia alcançar.

Afinal na Barra Funda, deu para ver que de fato a estação do metrô estava totalmente fechada. Muita gente em frente aos portões. Pelo menos 5 equipes da televisão estavam lá.

Chegou R e conversamos com algumas pessoas. Uma senhora, A, trabalhava em um stand de telefonia na estação e contou que era a favor da greve mas não conseguiu evitar vir trabalhar. Ela estava zangada com os ferroviários que não tinham parado. Disse que estava a um ano de se aposentar, então a Reforma da Previdência não a assustava, mas que temia por sua filha. Já G disse que nem sabia direito que tinha greve geral e que era simpático à ideia. Nordestino, tinha certa consciência da necessidade de direitos trabalhistas e da injustiça social. Falou contra Rodrigo Maia em relação à idade de aposentadoria em situações rurais: desafiou o parlamentar a trabalhar no sol do Piauí, de onde deduzi que vinha.

Um grupo de 5 ou 6 meninas irrompeu na multidão cantando ao som de uma percussão. Entoavam uma paródia política do “Trem das Onze” de Adoniran. Distribuíram panfletos e fizeram um belo auê. Conversamos com M, que disse que eram estudantes de arte da UNESP, que é ao lado. Disse que era contra a Reforma, mas criticou o PT, que fez reformas semelhantes quando estava no poder.

Foto: Alice Vergueiro

Saímos e caminhamos até a estação Marechal Deodoro, que estava aberta. Tinha uns 4 funcionários junto à catraca, mas pareciam ser de um setor administrativo que tinham sido recrutados para garantir o ingresso. Uma moça que trabalha para o Estadão estava lá e pouco soube informar sobre o movimento. Decidimos ir a Santa Cecília.

Paramos na entrada da Uninove na esperança de falar com algum estudante, mas acabou que fomos embora. Eram 8h20.

Descendo a rua das Palmeiras em direção ao largo, encontramos uma passeata em apoio à greve. Eram do Santa Cecília Sem Medo. Reconheci G. Eram apenas umas 50 pessoas, mas, aguerridas, cantavam palavras de ordem e receberam tanto festa como ovos de moradores dos edifícios.

No largo, conversamos com A, que esteva na passeata. Ele disse que esperavam mais adesão da população à Greve Geral. A avaliação dele, como de toda a esquerda, era que a Greve poderia ser um estopim para a evidente insatisfação geral que as manifestações da Educação tinham logrado, já que o cenário econômico está ruim faz uns três anos e não há boa perspectiva. Além disso, as revelações do Intercept acerca da Lava Jato parecia que tinha destampado a narrativa bolsonarista, e que as pessoas iriam acorrer às ruas. Apontou também que é difícil mobilizar em uma sociedade onde o trabalho informal é muito amplo, onde as formas de trabalho estão mudando e o sindicalismo não consegue acompanhar. Falou que há certo fetiche com a internet e as tecnologias de comunicação, que elas sozinhas não produzem nada: ou tem movimento, ou não tem mobilização. A disse também que muitos de seus amigos estavam sucumbindo ao conspiracionismo, acreditando em algum tipo de inteligência ampla que tudo domina, apagando a incerteza e descontrole geral que qualquer empresa.

Sentei numa padaria para escrever e vi a tela de TV sem som. A cobertura parecia ter mudado de tom (tinha visto rapidamente as telas nos botecos do caminho). Algumas fumaças de pneu queimado, PMs pelo Brasil agredindo gente. Fiquei sabendo que um ato na USP fora reprimido com bombas pela PM, que fez 11 prisões. Eram quase todos estudantes e foram encaminhados ao DEIC, e não a outras delegacias que lidam com dano ao patrimônio e coisas assim. O DEIC investiga terrorismo e formação de quadrilha e coisas assim. Um carro pegou fogo na ocasião. Conversei com gente do movimento e ninguém sabe quem ateou a chama.

Vi que a história do hacker russo ainda está sendo veiculada, e o “descuido” de Moro era noticiado.

Avaliei que a greve tinha sido decepcionante. A CUT falou em 45 milhões de trabalhadores parados no Brasil, mas na cidade de São Paulo não foi muito forte. O metrô não ter aderido totalmente, e os ferroviários, foi determinante. Mas a sociedade não aderiu em massa, vai ser preciso avaliar isso.

Foto: Alice Vergueiro

A adesão à manifestação marcada para a Paulista era agora uma incógnita.

Deu 16h e subi de metrô à avenida. Desci na estação Consolação e segui em direção ao MASP. A avenida estava sendo fechada a partir da rua Augusta, e de longe já deu para ver os balões dos sindicatos e centrais sindicais na frente do MASP.

Logo encontrei uma cena que me impressionou muito: vi uma multidão de umas 300 pessoas que assistiam uma… partida de futebol! Armaram dois golzinhos no asfalto, cercaram um espaço com fita e duas esquadras mistas de moços e moças jogavam uma partida de futebol narrada ao vivo. “Sai do Telegram, juiz Moro!” pedia o locutor. Era muito divertido e deu uma enorme esperança que o ato ia ser mais do que ficar na frente de um carro de som ouvindo discursos gritados. Ficamos para ver um pouco, e entendi que era organizado por coletivos de futebol. Vi lá presentes a Democracia Corinthiana, Rosa Negra, Coletivo Porcomunas, a Celeste Operária e o Ação Direta e Futebol. Conversamos com alguns deles e nos contaram que a Celeste foi criada em 2015 por ocasião de uma greve. Eles atuam no mundo do futebol de várzea com pauta libertária de esquerda, sempre com times mistos.

Achei incrível a iniciativa e desejei que atividades assim crescessem nos atos futuros. Muitos, como eu, reclamam que o formato clássico do carro de som afasta e é agressivo, separando muito quem fala e quem escuta. O movimento negro e feminista têm práticas diferentes e buscam quebrar isso. A poesia da fala percutida e ritmada do Slam, por exemplo, faz com que as mensagens dos movimentos negros sejam mais criativas e contundentes, uma poética de luta.

Há que se reconhecer que o carro de som tradicional emite a mensagem mais longe, o que faz do veículo um carro de guerra. Mas é um modelo de comunicação compatível com a MASSA, enquanto outros movimentos mais da “nova esquerda” preferem formas mais diversas, mais plataforma e menos púlpito de repassar decisão da direção, compatíveis com a MULTIDÃO.

Trabalhadores autônomos, classe média e a sociedade em geral se assustariam com o formatão sindical, não se sentindo reconhecidas em atos públicos.

Foto: Alice Vergueiro

Isso junta com uma crítica que ouvi hoje e ouço bastante no atual contexto, que se refere ao uso das cores nacionais pela esquerda. A camisa da seleção, a bandeira brasileira e o verdeamarelo em geral foi apropriado pela direita que ainda reclama para si a legítima defesa da nacionalidade. É um campo simbólico poderoso e, argumenta-se, não pode ser monopólio da direita. Tem gente que é internacionalista e de pronto rejeita a ideia de disputar as cores nacionais. Mas tem uma esquerda desenvolvimentista que vê o Estado nacional como plataforma de atuação e assim está mais aberta a operar essa reapropriação.

Por outro lado, há quem aponte na esquerda que não ter mensagem clara na manifestação abre para a manipulação pela direita, como teria acontecido em 2013. Esconder bandeiras e moderar no vermelho ou nas pautas esquerdistas unitárias pode encorajar a classe média, mas aumenta a chance de sequestro pela direita.

Isso para dizer que vi pelo menos uma bandeira do Brasil (mas com Lula Livre escrito), e uma ou outra coloração verdeamarela, mas que no geral a estética sindical predominou.

Achei notável a variedade de grupos na manifestação, muitos coletivos, partidos e sindicatos diferentes, com variedade de idades e tipos. Mas eram todos militantes, havia pouca gente do “público em geral”. Predominavam as bandeiras e cartazes impressos, com poucas mensagens feitas à mão, o que no geral indica capilaridade na sociedade.

Tinha Lula Livre e Fora Bolsonaro, mas o tema da Reforma da Previdência dominou.

Caminhamos até o final do ato, que era na rua Pamplona, logo depois da FIESP. Em frente a Federação das Indústrias, um dos dois carros de som. Esse era o da CUT, e um outro estava em frente ao MASP, do CSP-CONLUTAS, ligado ao PSTU.

Vi bandeiras do PSTU, CUT, PCdoB, PCB, UNE, LGBT, POR4, um pessoal da UFABC, outro da Marcha Mundial das Mulheres.

Vi uma camiseta “Sinistra Critica Palestrina”, outra “Jogue como uma garota”, várias de Lula. Vi um cartaz “In greve we trust”. Vi os estandartes do “Cecílias Sem Medo”.

Encontrei o fotógrafo R que me contou que estivera na joão Dias com o MTST de manhã. Avaliamos que no geral a greve tinha sido fraca em São Paulo, apesar dos vários pontos de ações pela cidade. Ninguém tinha conseguido interromper a atividade normal da cidade de forma significativa. R ponderou que o prefeito Covas tinha até decretado a liberação do rodízio na cidade, que é uma medida de emergência quando o transporte público colapsa. Mas ele desfez a medida quando os sindicatos não aderiram completamente à paralisação.

Vi a faixa “Que os ricos paguem pela crise. POEMA Política Econômica da Maioria”.

Vi um cartaz impresso colado na saída do metrô, que trazia as figuras de Moro e Dallagnol, com os dizeres: “Interesses acima de tudo. Tesão acima das provas. Conhecimento destrói mitos”.

Vi o sósia do Roberto Carlos, que cantava no asfalto. Estava com um terno metade branco e metade vermelho. Em atos coxinhas, ele vem com um metade verde e metade amarelo.

Vi um casal de jovens que tinham feito dois punhos cerrados, que traziam acima da cabeça enfiados em um pedaço de pau, com cartaz “Educação”. Anotei os balões da APEOESP, UDEMO, CUT, CSP-CONLUTAS.

Passou S, e depois V.

Uma locutora disse ao microfone “Não durma hoje, Bolsonaro, pois somos o seu pesadelo”.

Vi camiseta do MST, da Pagu, o faixão gigante do PCO, e outro que trazia “Centrais sindicais parem de negociar o nosso futuro com o Centrão e Bolsonaro. MRT. Esquerda diário”.

Um moço fez um cartaz pequeno com “Valeu Glenn”, com um coração desenhado.

Tinha vários batuques, um deles do Faísca. Vi o pessoal do JUNTOS!, do Território Livre.

Vi também autonomistas, com suas bandeiras negras e vermelhas, e negras e roxas, além de uma da Frente Antifascista São Paulo e outra do Coringão Antifa. A Fanfarra Clandestina estava lá com seus metais e repertório libertário. Encontrei N e nos cumprimentamos, e depois M.

Perguntei várias vezes às pessoas o que elas achavam que vinha pela frente. Todo mundo disse que não tinha a mínima ideia. Ninguém está confiante ou otimista.

Vi uma faixa presa à árvores: “Milicianos, Evangélicos, Elite Industrial, Globo. Somos contra o fascismo”, e outra no meio do povo: “Greve Geral por tempo indeterminado”.

Vi uma bandeira do “Coletivo de Trabalhadores do SESC São Paulo”.

Estava caminhando pelo povo meio sem rumo, todo mundo se olhando sem saber o que ia acontecer, e aí ou vi o Arrastão dos Blocos, com seu carrinho de som e mais uns 10 bonecões do tipo daqueles do carnaval de Olinda. Fiquei muito feliz, pois eles dão o tom certo a encontros políticos e fazem muita diferença na rua. Cantavam uma de suas canções, de que gosto muito:

“Segura sua mão na minha, segura sua mão na minha, bora fazer juntas o que não dá pra fazer sozinha!”.

Segui com eles. Passamos pela frente do MASP no sentido Paraíso, mas contornamos e voltamos pela via em direção à Consolação. Talvez pela ação deles, ou talvez fosse já combinado, percebi que o ato se transformava em passeata e seguia para descer a avenida Consolação.

Saí da melancolia e achei que o astral mudara totalmente, agora em marcha e com alegria.

“Arrastão dos blocos, nem um passo atrás. Folia da democracia, ditadura nunca mais!”.

Notei que a bolinha de luz estava lá, com mensagens como “#vazajato”.

Notei o estandarte “Comida e democracia, Brasil com soberania”.

Arrisquei um avaliação dos números. Achei que pelo menos 50 mil pessoas, enquanto outros me falaram até 120 mil corpos. Não era mal, deu para fazer as fotos.

Eram 19h15 quando segui até a frente do ato, que estava já virando à direita para descer a Consolação. Na esquina, uns 100 PMs vigiavam e bloqueavam a via que desce à avenida Rebouças.

Foto: Alice Vergueiro

Descemos até depois do cemitério, e sentamos para ver todo o povo passar. Mas rolou que depois de um pouco, minguou. Subimos a avenida e vimos alguns grupos descendo. Passou um carro de som, e vimos uns 5 pontos de fogo, que era lixo em chamas. Vimos a fachada de vidro do Itaú estilhaçada. Vi seis motos da PM lanças bombas sobre a rabeira do que restava da passeata (contei 7 detonações) e fez um grupo correr para a rua Matias Aires, e provavelmente depois descer a rua Bela Cintra.

Foto: Alice Vergueiro

Subimos até a Paulista e tinha gente meio parada, uns grupos e avulsos, iluminados por lixo em chamas no asfalto. Um fotógrafo me contou que a passeata vinha em paz, já com metade na Consolação, quando a PM foi prender um dos manifestantes. O povo protegeu e a polícia disparou em quem vinha vindo e continuou a disparar em quem buscava virar à direita para descer. Vi depois que um Defensor Público foi preso, apesar de se identificar. Vimos passar muitas motocicletas e viaturas em velocidade, e até o caveirão foi mobilizado. O povo todo estava espalhado pelas ruas até o centro e praça Roosevelt, e o jogo de gato e rato em pleno desenvolvimento.

Sentamos para uma cerveja e avaliamos que o dia fora meio broxante. A manifestação tinha sido legal e digna, mas não a celebração da resistência que esperávamos. A greve em si fraca, mas não dá para esperar que os metroviários e ferroviários carreguem tudo nas costas. A polícia esteve à vontade para intervir e criar tumulto.

Tomei o metrô e fui para casa.

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