Os dados pessoais dos consumidores

Doutrina

Logo ao acordar, muitos têm por hábito recorrer ao telemóvel para verificar a caixa de entrada de emails, obter informações sobre como estará o clima ou, ainda, aceder às notícias mais recentes. Mais tarde, a caminho do trabalho ou mesmo ao executar as tarefas domésticas, há aqueles que utilizam aquele aparelho para ouvir músicas ou podcasts; já na hora do almoço, usam-no novamente para aceder a um serviço de entrega de refeições. Para o regresso a casa, alguns optam por solicitar um veículo através de uma plataforma destinada a este fim. Ao acabar do dia, para relaxar, uns recorrem a serviços de streaming de conteúdos como filmes e séries utilizando smart TVs; outros preferem ir ao ginásio para exercitar-se enquanto usam gadgets de monitorização das funções biológicas, como smartwatches ou fit bits. Há ainda aqueles que, após a vivência isolada do período mais crítico da pandemia do COVID-19, já preferem fazer a maior parte das compras online – desde itens como livros e acessórios ou peças de vestuário até as compras habituais do mercado. Tudo isto sem contar o trabalho remoto e a socialização que ocorre no contexto das redes sociais.

Todos os elementos mencionados até aqui, em conjunto com muitos outros, tornaram-se parte da vivência de um grande número de pessoas e, mais particularmente, dos consumidores localizados dentro da União Europeia, designadamente em Portugal. Um dos fatores comuns de todos esses hábitos e práticas corriqueiras é a presença da tecnologia, tanto ao serviço do seu utilizador como também podendo servir aos propósitos econômicos de terceiros. A indagação que se coloca a seguir é: de que maneira?

A resposta é extremamente ampla, mas quase sempre passa pelos dados. Ao conviver com todas essas ferramentas tecnológicas e utilizá-las no seu dia-a-dia, o indivíduo revela inconscientemente (na maioria das vezes) informações sobre suas preferências e gostos, hábitos de rotina e até mesmo seu estado de saúde – o exemplo mais óbvio são os smartwatches ou fit bits -, ou através do histórico de compras do mercado, que potencialmente indicará uma alimentação mais ou menos saudável. O conjunto destes dados acerca de um indivíduo e o agregado dos dados relativos a grupos de pessoas enquadram-se no conceito de Big Data, que, por sua vez, poderá ser processado para identificar tendências e correlações, ou mesmo de maneira a afetar diretamente os indivíduos[1].

A construção jurídica da União Europeia preocupa-se com a regulação dos dados e do seu processamento em diferentes contextos. O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), aplicável desde 2018, confere a estrutura da proteção e prerrogativas relativas ao processamento de dados pessoais, resumidamente conceituados como informações relativas a uma pessoa singular identificada ou identificável[2].

No contexto específico do Direito do Consumo, é possível citar ao menos dois textos normativos: a Diretiva (UE) 2019/770 de maio de 2019 e a Diretiva (UE) 2019/2161 de novembro de 2019, que contêm dispositivos destinados a reger, dentre outros temas, a utilização dos dados pessoais dos consumidores no âmbito das relações de consumo.

A primeira das Diretivas apresenta uma das situações às quais a mesma deverá ser aplicável: “deverá igualmente aplicar-se sempre que o consumidor dê o seu consentimento relativamente a todo o tipo de material que constitua dados pessoais, como fotografias ou mensagens que irá carregar, posteriormente processado pelo profissional para fins de comercialização”[3].

Por sua vez, a Diretiva (UE) 2019/2161 inclui um novo requisito de informação aos contratos de consumo celebrados à distância[4], a saber: o profissional deverá informar ao consumidor “que o preço foi personalizado com base numa decisão automatizada”[5], quando aplicável, podendo esta decisão basear-se no processamento de dados pessoais. O Considerando 45 menciona uma forma ainda mais intensa de processamento de dados pessoais: a “definição de perfis de comportamento dos consumidores, de molde a permitir-lhes avaliar o poder de compra do consumidor”. Esta prática – a definição e a construção de perfis dos indivíduos com base no processamento dos seus dados pessoais – poderá revelar-se um tanto mais complexa sob o ponto de vista da salvaguarda dos direitos dos consumidores, uma vez que se destina não apenas a estabelecer correlações entre determinadas variáveis, mas também a estabelecer previsões acerca de comportamentos futuros[6].  

É importante ressaltar um ponto em comum crucial entre as duas Diretivas aqui mencionadas: a referência ao RGPD, na medida em que “no que se refere aos dados pessoais do consumidor, o profissional deve cumprir as obrigações decorrentes” do Regulamento[7]. Assim, para que o profissional possa valer-se do processamento dos dados pessoais dos consumidores para fins comerciais de forma lícita, deverá obrigatoriamente enquadrar tal operação dentro de uma das hipóteses da lista apresentada pelo Artigo 6.º do RGPD, bem como cumprir todos os demais requisitos legais.

Dentro da lista de hipóteses de licitude para o tratamento dos dados pessoais determinada pelo RGPD, a concessão do consentimento por parte do consumidor sobressai como a via mais adequada para a legitimação do processamento dos seus dados destinado a práticas comerciais[8]. É empiricamente observável que a maioria das pessoas apenas passa rapidamente pelos “Termos e Condições” dos vários serviços, conteúdos e produtos digitais que utiliza quotidianamente (como aqueles mencionados no início deste texto), sem realmente ater-se ao que é que está a prestar o seu consentimento[9]. Desta forma, a proteção dos dados pessoais nas relações de consumo existe na legislação europeia, ainda que de forma discutivelmente reduzida, e poderá ter a sua eficácia limitada pela própria conduta do consumidor.

A título de exemplo próximo da realidade dos consumidores situados em Portugal, uma prática comercial relativamente recente e provavelmente derivada da definição de perfis, é a apresentação ao consumidor de um folheto de promoções personalizadas, ou, nas palavras do próprio profissional, uma funcionalidade que permite ao consumidor visualizar “uma seleção dos seus produtos favoritos em promoção”[10]. Tal prática insere-se no contexto mais amplo dos esquemas de cartões de fidelização das grandes superfícies retalhistas, bastante comuns em Portugal, que permitem ao fornecedor acesso à uma verdadeira “mina de ouro”, no que diz respeito aos hábitos de consumo das famílias residentes em Portugal. Em contrapartida, caberá a cada consumidor refletir sobre um consciente exercício das prerrogativas legais à sua disposição, ou se continuará a carregar automaticamente nos botões de “aceito” de todos os serviços, conteúdos e produtos digitais que utiliza, a despeito das consequências em potencial.


[1] Opinião n.09/2013 do Grupo de Trabalho do Artigo 29.º acerca da limitação do propósito. Versão em língua inglesa.

[2] RGPD, Artigo 4.º (1)

[3] Considerando 24 da Diretiva (UE) 2019/770

[4] Artigo 6.º da Diretiva 2011/83/UE de outubro de 2011

[5] Diretiva (UE) 2019/2161, Artigo 4.º (4)(a)(ii)

[6] HILDEBRANDT, Mireille – Defining Profiling: A New Type of Knowledge? In HILDEBRANDT, Mireille; GUTWIRTH, Serge (eds) – Profiling the European Citizen. Dordrecht: Springer, 2008. pp. 17-45

[7] Diretiva (UE) 2019/770, Artigo 16.º (2) e Diretiva (UE) 2019/2161, Artigo 4.º (1)(b) e Artigo 6.º-A (10), que por sua vez modificam o conteúdo de outros instrumentos legais do Direito do Consumo Europeu

[8] POORT, Joost; ZUIDERVEEN BORGESIUS, Frederik J. – Online Price Discrimination and EU Data Privacy Law. Journal of consumer policy. 40:3 (2017), pp. 347-366.

[9] Como observado na página 92 do estudo de mercado intitulado “Consumer market study on online market segmentation through personalised pricing/offers in the European Union”, cujo resultado foi publicado em 2018.

[10] Um exemplo de tal prática pode ser visualizado aqui