Quem pode escrever no Livro de Reclamações?

Jurisprudência

No final do ano transato, o Tribunal da Relação do Porto (TRP) pronunciou-se sobre recurso de sentença que, mantendo decisões administrativas da ASAE, aplicou à sociedade arguida duas coimas no valor de € 3.750,00/cada, pela prática da contraordenação prevista no art. 3.º-1-b) do DL n.º 156/2005, de 15 de setembro, e condenou a mesma, após cúmulo jurídico, numa coima única, de € 5.000,00.

Fazendo uma síntese da demanda em causa, de acordo com os factos provados, na madrugada de 19.11.2017, os participantes “C” e “G” quiseram aceder ao interior de estabelecimento (discoteca), aberto ao público e em funcionamento, explorado pela sociedade arguida, o que foi negado por porteiro daquela. Ato contínuo, cada um dos participantes solicitou o Livro de Reclamações, o qual também lhes foi negado pelo funcionário, pelo que, a pedido dos denunciantes e ao abrigo do disposto no art. 3.º-4 do DL n.º 156/2005, uma patrulha da PSP deslocou-se ao local, sem que, contudo, tenha logrado remover a recusa da sociedade arguida em facultar o Livro de Reclamações, nesta ocasião manifestada pelo gerente daquela.

Nas conclusões das alegações de recurso, a sociedade arguida defendeu, no essencial, que, para efeitos do DL n.º 156/2005, os participantes “C” e “G” não podiam ser qualificados como “consumidores ou utentes”, na medida em que tal qualificação jurídica pressupõe a conclusão de uma relação de consumo com o profissional, o que, no caso, não chegou a verificar-se, donde faltaria pressuposto constitutivo do “direito a reclamar” dos referidos denunciantes.

Ora, em face das conclusões do recurso, a questão a resolver pelo TRP consistia em aferir se os participantes “C” e “G” deviam (ou não) qualificar-se como “consumidores ou utentes”, atento o facto de não terem sido admitidos a ingressar no interior do estabelecimento explorado pela sociedade arguida.

A este respeito, o TRP, subscrevendo integralmente a sentença recorrida, começou por apelar à ratio legis do DL n.º 156/2005 expressa no seu Preâmbulo, onde se pode ler o seguinte: “[o] livro de reclamações constitui um dos instrumentos que tornam mais acessível o exercício do direito de queixa, ao proporcionar ao consumidor a possibilidade de reclamar no local onde o conflito ocorreu. (…) A justificação da medida (…) prendeu-se com a necessidade de tornar mais célere a resolução de conflitos entre os cidadãos consumidores e os agentes económicos, bem como de permitir a identificação, através de um formulário normalizado, de condutas contrárias à lei. É por este motivo que é necessário incentivar e encorajar a sua utilização, introduzindo mecanismos que o tornem mais eficaz enquanto instrumento de defesa dos direitos dos consumidores e utentes de forma a alcançar a igualdade material dos intervenientes a que se refere o artigo 9.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho” [negrito nosso]. Como se refere, muito assertivamente, no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.03.2010, “[o] princípio base que sustenta a exigência do livro de reclamações vai assim muito além da mera possibilidade de em concreto ser dado ao utente/cliente a possibilidade de ver o seu caso concreto ser resolvido, na medida em que está subjacente em toda a evolução legislativa a garantia de uma boa prestação de serviços ao consumidor em geral nomeadamente, na possibilidade de fiscalização efectiva do modo como se prestam os serviços”. Ademais, coloca-se também a necessidade de enfrentar, adequadamente, a tendencial resistência dos fornecedores de bens e prestadores de serviços a proceder à imediata entrega do Livro de Reclamações aos utentes ou consumidores que dele pretendam fazer uso.

Neste encalço, prossegue o aresto em análise, com apoio no Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 03.04.2017, exaltando que, da interpretação e aplicação conjugadas dos n.ºs 1 e 3 do art. 3.º do DL n.º 156/2005 resulta que o dever de o fornecedor de bens ou prestador de serviços apresentar imediatamente ao consumidor ou utente o Livro de Reclamações não se compadece com qualquer espécie de condicionamento, nomeadamente “considerações sobre os motivos das reclamações ou a legitimidade de quem as apresenta”. Tais aspetos apenas podem ser suscitados e discutidos no âmbito do procedimento espoletado pelo preenchimento da folha de reclamação, porquanto o profissional “não pode ser juiz de si próprio, estando-lhe absolutamente vedada a recusa de apresentação do livro seja com que fundamento for”.

E quanto à questão da alegada falta de qualidade subjetiva de “utentes ou consumidores” suscitada em relação aos participantes, estribando-se no disposto pelo art. 2.º-1 do DL n.º 156/2005, o TRP adere ao entendimento segundo o qual a disciplina normativa daquele diploma “(…) está concebida para as situações em que os estabelecimentos se encontram abertos ao público e em funcionamento e em que o consumidor está em condições de adquirir o bem ou serviço”, com vista à manutenção de “relações de clientela”, o que, como é bom de ver, não pode ter lugar na hipótese de o estabelecimento se encontrar encerrado (inaplicável na situação dos autos), mas já se verifica no cenário, alternativo, de uma pessoa ingressar no interior de uma loja física imbuída do espírito de realizar alguma compra, mas não chegar a fazê-lo. Nesta segunda situação conjeturada, apesar de não chegar a haver lugar à celebração de uma relação jurídica de consumo, não deixamos ter um “consumidor” para os efeitos do DL n.º 156/2005, a quem assiste, de modo inequívoco, o direito a solicitar a apresentação imediata do Livro de Reclamações.

Por conseguinte, e em suma, para efeitos de delimitação do âmbito subjetivo de aplicação do DL n.º 156/2005 – e exclusivamente para estes efeitos, atenta a definição diversa apresentada no art. 2.º-1 da Lei-Quadro de Defesa do Consumidor – deve entender-se por consumidor “toda e qualquer que pessoa com interesse em adquirir um produto ou serviço, e que com esse propósito se dirige a um estabelecimento de venda de bens ou prestação de serviços” – como preconizado no acórdão aqui em análise –, abarcando esta noção os “potenciais clientes” que apenas pretendem que lhes seja prestado um serviço ou fornecido um determinado bem, ainda que tal, efetivamente, não tenha lugar, donde tal qualidade não podia deixar de ser reconhecida aos participantes “C” e “G”, os quais apenas não acederam ao interior do estabelecimento da sociedade arguida porque esta lhes vedou o ingresso.

Proibição de bloqueio geográfico injustificado e de outras formas de discriminação nas transações eletrónicas para os consumidores das Regiões autónomas dos Açores e da Madeira

Doutrina

No passado dia 10 de janeiro, foi publicada, em Diário da República, a Lei n.º 7/2022, em vigor a partir de 11 de março (art. 11.º), a qual visa proibir os comerciantes[1] que disponibilizam bens ou prestam serviços em território nacional, através de uma página na internet e/ou de aplicações móveis[2], de desenvolverem práticas de bloqueio geográfico (geoblocking) ou outras formas de discriminação nas transações em linha, baseadas, direta ou indiretamente, no local de residência ou de estabelecimento do consumidor (pessoa singular ou coletiva[3]), quando situado nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.

O referido diploma visa suprir uma lacuna subsistente mesmo após a adoção do Regulamento (UE) 2018/302 do Parlamento Europeu e do Conselho de 28 de fevereiro de 2018, cuja execução, no que tange às obrigações de designação das entidades responsáveis pela aplicação, fiscalização e prestação de assistência aos consumidores e à definição de um regime sancionatório que, de uma forma efetiva, proporcionada e dissuasora, garantisse o seu cumprimento, foi assegurada, na ordem jurídica interna, através da publicação do Decreto-Lei n.º 80/2019, de 17 de junho.

Com efeito, o Regulamento (UE) 2018/302, cujo objetivo consiste em prevenir o bloqueio ou restrição do acesso às interfaces em linha de um comerciante que opera num Estado-Membro dirigido a clientes (consumidores e empresas, em especial as micro, pequenas e médias empresas, que recebem serviços ou adquirem bens, ou procuram fazê-lo, na União, com o objetivo exclusivo de utilização final) de outros Estados-Membros que pretendem realizar transações transfronteiriças (o denominado “bloqueio geográfico”), assim como outras formas de discriminação direta ou indireta com base na nacionalidade ou no local de residência ou no local de estabelecimento dos clientes[4], não se aplica a situações meramente internas, em que todos os elementos de conexão de uma transação (nomeadamente, a nacionalidade, o local de residência ou o local de estabelecimento do cliente ou do comerciante, o local de execução, os meios de pagamento utilizados na transação ou na oferta, bem como a utilização de uma plataforma em linha) estão circunscritos num único Estado-Membro (art. 1.º, n.º 2).

Assim, com o propósito de conferir plena eficácia às disposições do art. 20.º da Diretiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006 (“Diretiva Serviços”), transposta para o ordenamento jurídico nacional através do Decreto-Lei n.º 92/2010, de 26 de julho, e conferir especial proteção aos consumidores das Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores que, de forma recorrente, se veem impedidos de aceder a bens fornecidos ou serviços prestados de forma essencialmente automatizada “após comunicação do seu domicílio, ou, similarmente, avisados da indisponibilidade de envio de bens para as ilhas” e, por essa via, são alvo de práticas discriminatórias que acentuam as desigualdades estruturais já determinadas pela insularidade e pelo caráter ultraperiférico das Regiões Autónomas e colocam em crise o princípio constitucional da continuidade territorial (arts. 5.º, 6.º, 225.º-2, e 229.º-1, todos da CRP), a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira apresentou à Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 71/XIV/2.

À semelhança do Regulamento europeu, a Proposta de Lei n.º 71/XIV/2 e a Lei n.º 7/2022 que veio a ser aprovada, sob a forma de decreto (para publicação), no termo do processo legislativo, pretenderam abordar as principais práticas discriminatórias operadas pelos comerciantes na atividade de disponibilização de bens ou de prestação de serviços com recurso a tecnologias de informação, arrumando-as em três grupos (arts. 4.º a 6.º): 1) acesso às interfaces online[5]; 2) acesso a bens e serviços; 3) não discriminação por razões relacionadas com o pagamento[6].

Concretizando: em primeiro lugar, a fim de garantir a igualdade de tratamento e evitar a discriminação entre clientes de Portugal Continental e das Regiões Autónomas, os comerciantes que disponibilizam bens ou prestam serviços em território nacional não podem bloquear nem restringir, por meio de medidas de caráter tecnológico ou qualquer outro, o acesso do consumidor às suas interfaces online por razões relacionadas com o seu local de residência ou com o local de estabelecimento em território nacional (art. 4.º-1). Embora a existência de diferentes versões das suas interfaces em linha, dirigidas a consumidores de Portugal Continental e das Regiões Autónomas não resulte vedada, o redirecionamento de um cliente de uma versão da plataforma em linha para outra versão, diferente daquela a que o mesmo tentou aceder inicialmente, com fundamento no seu local de residência ou no seu local de estabelecimento em território nacional, é proibida, salvo se o consumidor consentir expressamente nesse redirecionamento (art. 4.º-2 e 3). O consentimento expresso do cliente deverá ser considerado válido para todas as visitas subsequentes do mesmo consumidor à mesma interface em linha, sem prejuízo de dever resultar sempre salvaguardada a possibilidade de aquele retirar esse consentimento em qualquer momento. As proibições impostas nos n.ºs 1 e 2 não são aplicáveis na eventualidade de o bloqueio, a restrição de acesso ou o redirecionamento se revelarem necessários para assegurar o cumprimento de obrigações legais impostas pelo Direito da União Europeia ou pelo ordenamento jurídico português às quais as atividades do comerciante se encontram sujeitas (art. 4.º-4).

Em segundo lugar, com o fito de permitir que os clientes das Regiões Autónomas possam participar em transações nas mesmas condições que os clientes fixados em Portugal Continental e, por essa via, disponham de acesso pleno e equitativo aos diversos bens e/ou serviços oferecidos, os comerciantes não podem aplicar condições gerais de acesso aos bens e/ou serviços diferentes em função do local de residência ou do local de estabelecimento do consumidor em território nacional (art. 5.º-1)[7] e têm a obrigação de disponibilizar condições de entrega dos seus bens ou serviços para a totalidade do território nacional (art. 5.º-2). A proibição prevista no n.º 1 do art. 5.º não deverá, porém, ser entendida como afetando a aplicação de qualquer limitação territorial ou de outra natureza relativamente à assistência pós-venda ou a serviços pós-venda oferecidos pelo comerciante ao cliente. Por sua vez, a norma impositiva do n.º 2 do mesmo art. 5.º também não deverá ser interpretada no sentido de impor uma obrigação suplementar de suportar custos de transporte e de montagem/desmontagem para além do estabelecido no contrato, em conformidade com o Direito nacional e com o Direito da União Europeia, pelo que não obsta a que os comerciantes proponham condições de entrega distintas em função do local de residência ou do local de estabelecimento do consumidor, nomeadamente quanto ao custo da entrega (art. 5.º-3).

Em terceiro e último lugar, sem prejuízo de, em princípio, serem livres de decidir os meios de pagamento que pretendem aceitar[8], os comerciantes não podem aplicar diferentes condições a operações de pagamento[9], no âmbito dos instrumentos de pagamento por si aceites, por razões relacionadas com o local de residência ou de estabelecimento do consumidor em território nacional, o local de domiciliação da conta de pagamento[10] ou o local de estabelecimento do prestador de serviços de pagamento (art. 6.º-1). Sem embargo, os comerciantes não ficam impedidos de cobrar encargos não discriminatórios pela utilização de um instrumento de pagamento, nos termos do já referido Regulamento (UE) n.º 2018/302, os quais não podem exceder os custos diretos suportados pelo comerciante para emissão de ordem de pagamento através de dispositivo personalizado ou conjunto de procedimentos acordados entre o utilizador e o prestador de serviços de pagamento (art. 6.º-3). E, bem assim, quando tal se justifique por razões objetivas, a proibição imposta no n.º 1 do art. 6.º também não impede que o comerciante suspenda a entrega dos bens ou a prestação do serviço até receber uma confirmação de que a operação de pagamento foi devidamente iniciada (art. 6.º-2)[11].

A fiscalização do cumprimento das normas previstas na Lei n.º 7/2022 compete à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica e às autoridades regionais com competência no âmbito da fiscalização económica (Autoridade Regional das Atividades Económicas, na Região Autónoma da Madeira, e Inspeção Regional das Atividades Económicas, na Região Autónoma dos Açores) – art. 7.º.

Uma derradeira consideração para recordar que, por força do disposto pelo art. 7.º do DL 24/2014, de 14 de fevereiro, nos sítios na Internet dedicados ao comércio eletrónico é obrigatória a indicação, de forma clara e legível, o mais tardar no início do processo de encomenda, da eventual existência de restrições geográficas ou outras à entrega e aos meios de pagamento aceites.


[1] “Comerciante” é, aqui, entendido como qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, com representação social ou não em território nacional, que atua, ainda que por intermédio de outra pessoa, com fins que se incluam no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional (art. 2.º, al. e)).

[2] Releva, aqui, a noção de “serviços prestados por via eletrónica”, i.e., serviços prestados pela Internet ou por meio de uma rede eletrónica cuja natureza torna a sua prestação essencialmente automatizada, envolvendo um nível muito reduzido de intervenção humana e impossível de assegurar sem recorrer às tecnologias da informação (art. 2.º, al. a)). Os serviços prestados por via eletrónica incluem, por exemplo, serviços de computação em nuvem (cloud), armazenamento de dados fora de linha, alojamento de sítios Web e fornecimento de barreiras de proteção, utilização de motores de busca e diretórios da Internet.

[3] “Consumidor” é, aqui, entendido como qualquer uma pessoa singular ou coletiva, residente ou com sede em território nacional, a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios (art. 2.º, al. b)).

[4] Outros critérios de distinção que conduzam ao mesmo resultado que a aplicação de critérios diretamente baseados na nacionalidade ou no local de residência (independentemente do facto de o cliente em causa estar presente, de forma permanente ou temporária, noutro Estado-Membro), ou no local de estabelecimento dos clientes podem ser aplicados, nomeadamente, com base em informações que indiquem a localização física dos clientes, tais como o endereço IP quando ligado a uma interface em linha, o endereço para a entrega dos bens, a escolha do idioma ou o Estado-Membro em que o instrumento de pagamento do cliente tiver sido emitido.

[5]Interface online” é, aqui, entendida como qualquer forma de software, incluindo um sítio Web ou uma parte dele e as aplicações, nomeadamente móveis, explorada por um comerciante ou por outrem em seu nome, que proporciona aos consumidores o acesso aos bens ou serviços do comerciante para efeitos da realização de uma transação que tem por objeto esses bens ou serviços (art. 2.º, al. d)). Constitui contraordenação leve a violação do disposto no art. 4.º, punida com coima de € 50 a € 1500 ou de € 100 a € 5000, consoante o agente seja pessoa singular ou coletiva (arts. 8.º-1 e 9.º-1).

[6] Constitui contraordenação grave a violação do disposto nos arts. 5.º e 6.º, punidas com coima de € 250 a € 3000 ou de € 500 a € 25 000, consoante o agente seja pessoa singular ou coletiva (arts. 8.º-2 e 9.º-2).

[7] Por “condições gerais de acesso” entendem-se os “termos e condições” e outras informações, incluindo os preços líquidos de venda, que regulam o acesso dos consumidores aos produtos ou serviços oferecidos por um comerciante, estabelecidos, aplicados e postos à disposição do público em geral, através de diferentes meios (designadamente, anúncios publicitários, páginas Web, documentação pré-contratual ou contratual), pelo comerciante ou por outrem em seu nome (art. 2.º, al. c)). Naturalmente, os “termos e condições” que são negociados individualmente entre o comerciante e os clientes não revestem a natureza condições gerais de acesso, para os efeitos da Lei n.º 7/2022.

[8] “Nos termos do Regulamento (UE) 2015/751 do Parlamento Europeu e do Conselho e da Diretiva (UE) 2015/2366 do Parlamento Europeu e do Conselho, os comerciantes que aceitem um instrumento de pagamento com cartão de uma determinada marca e categoria não têm a obrigação de aceitar nem cartões dessa mesma categoria, mas de uma marca diferente de instrumentos de pagamento com cartão, nem outras categorias de cartão da mesma marca. Assim, os comerciantes que aceitem um cartão de débito de uma determinada marca não são obrigados a aceitar cartões de crédito dessa marca, ou, se aceitarem cartões de crédito ao consumidor de uma determinada marca, não são obrigados a aceitar cartões de crédito profissionais da mesma marca. De igual modo, um comerciante que aceite serviços de iniciação de pagamentos na aceção da Diretiva (UE) 2015/2366 não é obrigado a aceitar um pagamento que implique a celebração de um novo contrato ou a alteração de um contrato com um prestador de serviços de iniciação de pagamento.” (considerando (32) do Regulamento (UE) 2018/302).

[9] “Operação de pagamento” é, aqui, entendida como o ato, iniciado pelo ordenante ou em seu nome, ou pelo beneficiário, de depositar, transferir ou levantar fundos, independentemente de quaisquer obrigações subjacentes entre o ordenante e o beneficiário (art. 2.º, al. f)).

[10] O Regulamento (UE) n.º 260/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho já proíbe que os beneficiários, incluindo os comerciantes, exijam contas bancárias localizadas num determinado Estado-Membro para que um pagamento em euros seja aceite (art. 9.º-2).

[11] A Diretiva (UE) 2015/2366 introduziu requisitos rigorosos de segurança para a iniciação e o processamento de pagamentos eletrónicos, com vista a reduzir o risco de fraude tanto para os métodos de pagamento novos como para os mais tradicionais, sobretudo os pagamentos em linha. Os prestadores de serviços de pagamento são obrigados a aplicar a chamada “autenticação forte do cliente”, um processo de autenticação do ordenante baseada na utilização de dois ou mais elementos pertencentes às categorias conhecimento (algo que só o utilizador conhece), posse (algo que só o utilizador possui) e inerência (algo que o utilizador é), os quais são independentes, na medida em que a violação de um deles não compromete a fiabilidade dos outros, e que é concebida de modo a proteger a confidencialidade dos dados de autenticação (cf. art. 4.º, n.º 30). Para transações remotas, tais como os pagamentos em linha, os requisitos de segurança vão mais além, exigindo uma ligação dinâmica a um montante e a um beneficiário específicos, para reforçar a proteção do utilizador, minimizando os riscos em caso de erro ou ataques fraudulentos (art. 97.º-2). No entanto, nas situações em que o comerciante não disponha de outros meios para reduzir o risco de incumprimento por parte dos clientes, incluindo, em particular, dificuldades relacionadas com a avaliação da qualidade de crédito do cliente, o comerciante deverá ser autorizado a não fornecer os bens ou a não prestar os serviços até ter recebido a confirmação de que a operação de pagamento foi devidamente iniciada. Em caso de débito direto, o comerciante deverá ser autorizado a exigir um pagamento adiantado através da transferência de crédito antes de os bens serem enviados ou antes de o serviço ser fornecido. No entanto, qualquer diferença de tratamento deverá basear-se apenas em razões objetivas e bem fundamentadas (considerando (33) do Regulamento (UE) 2018/302).

Interação entre a arbitragem necessária e o procedimento de injunção

Doutrina

Não raras vezes os centros que integram a rede de arbitragem prevista no art. 4.º da Lei n.º 144/2015 recebem reclamações de consumo em que o requerente formula, a final, pedido de declaração de inexistência de obrigação pecuniária alegadamente emergente de contrato concluído com o requerido. Pode suceder que, em momento anterior ou posterior ao início da fase de mediação em sede de RALC[1], a cobrança do correspetivo crédito pecuniário seja peticionada por meio de procedimento de injunção[2] apresentado pelo alegado credor (demandado nos procedimentos de RALC) contra o alegado devedor (demandante nos procedimentos de RALC).

A partir do acima exposto, propomo-nos desenvolver uma breve reflexão sobre se e em que medida a providência de injunção proposta pelo profissional influi no prosseguimento do processo de arbitragem e, por esta via, no conhecimento do mérito da causa pelo tribunal arbitral, não sem antes produzirmos duas breves considerações preliminares.

Assim, cumpre referir, em primeiro lugar, que a injunção se trata de um procedimento especial, que visa conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de contratos até € 15.000,00[3]. O procedimento injuntivo inicia-se com um requerimento apresentado pelo credor junto do Balcão Nacional de Injunções (BNI), secretaria-geral com competência exclusiva para a tramitação eletrónica do procedimento. Uma vez notificado para pagar, duas possibilidades se colocam em função do comportamento do requerido: ou o requerido não deduz oposição e o secretário judicial apõe fórmula executória no requerimento injuntivo (art. 14.º- 1 do Anexo ao DL 269/98) ou opta por deduzir oposição e o procedimento converte-se numa Ação Especial para o Cumprimento de Obrigações Pecuniárias Emergentes de Contratos (arts. 16.º-1 e 17.º-1 do Anexo ao DL 269/98).

Em segundo lugar, para os efeitos do presente texto, vamos considerar que o litígio de consumo submetido a resolução por entidade de RALC integra a “arbitragem necessária” que resulta da aplicação conjugada dos arts. 1.º-2 e 15.º-1 da Lei n.º 23/96 ou do disposto pelo art. 14.º-2 e 3 da Lei n.º 24/96 (ou, em alternativa, que o profissional se encontra vinculado à jurisdição do centro de arbitragem por força de declaração de adesão plena), pelo que assiste ao consumidor o direito potestativo de remeter a contenda à apreciação de tribunal adstrito a centro de arbitragem institucionalizada.

Isto posto, assentes as considerações que antecedem, estamos em condições de abordar o objeto deste texto – a interação entre a arbitragem necessária e o procedimento de injunção –, o que nos propomos realizar em face de quatro diferentes cenários, a tratar autonomamente.

1) Reclamação de consumo apresentada pelo consumidor junto do centro de arbitragem antes de aquele ser notificado de injunção apresentada junto do BNI, por iniciativa do profissional

Para a melhor compreensão dos contornos que encerra esta primeira hipótese (assim como as que se tratarão de seguida), afigura-se pertinente, antes de mais, discernir se e em que medida pode verificar-se um dos pressupostos processuais negativos previstos no art. 577.º, al. i) do CPC – litispendência ou caso julgado –, o que se afere, em relação a ambas as circunstâncias impeditivas do conhecimento do mérito da causa pelo julgador, pela tríplice identidade quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir entre ações (arts. 580.º-1 e 581.º do CPC).

Acresce que a litispendência pressupõe a existência de uma ação anterior ainda em curso e deve ser deduzida na ação proposta em segundo lugar, isto é, a ação para a qual o réu/demandado foi citado posteriormente (art. 582.º-1 e 2 do CPC)[4]. Já a situação de caso julgado – aqui entendida como exceção de caso julgado (e não como autoridade de caso julgado)[5] – depende do trânsito em julgado de sentença (ou despacho saneador) que decida do mérito da primeira causa (arts. 580.º-1 e 619.º-1 do CPC), assim definindo a relação material controvertida com força obrigatória dentro e fora do processo[6].

Ora, a injunção «não se trata (…) de qualquer forma processual diversa das já existentes na nossa lei adjetiva, mas sim do estabelecimento de uma “fase desjurisdicionalizada”, visando facultar relativamente a dívidas de montante reduzido a possibilidade (…) de acesso à acção executiva sem passagem pelo processo declarativo, garantida que se mostra a defesa do devedor através dos mecanismos normais de oposição à execução, decorrentes do artigo 815.º do Código de Processo Civil [de 1961][7]», sendo que “[a] atividade do secretário judicial não implica resolução, com recurso a critérios jurídicos, de quaisquer conflitos de interesses, não divergindo substancialmente daquela que às secretarias judiciais é atribuída por diversas disposições do processo”[8], pelo que os seus atos não revestem natureza materialmente jurisdicional[9].

Assim, retomando a hipótese em apreço, considerando que a injunção não reveste a natureza de uma verdadeira ação em que se lance mão de uma atividade jurisdicional de natureza cognitiva, carece de sentido a convocação do pressuposto processual da litispendência, isto mesmo que o demandado-injungente só venha a ser notificado da reclamação de consumo em data posterior ao momento da notificação do requerimento injuntivo ao demandante-injungido.

2) Reclamação de consumo apresentada pelo consumidor junto do centro de arbitragem e notificada ao profissional depois de o demandante-injungido ser notificado nos termos do art. 12.º-1 do DL n.º 269/98, mas antes da dedução de oposição por aquele último (ou de decorrido o prazo para o efeito)

Em relação ao quadro fático ora apresentado, para além do que já se deixou consignado acerca da (im)pertinência da convocação do pressuposto processual da litispendência, acompanhamos o entendimento segundo o qual “deve permitir-se que o consumidor inicie a arbitragem quando é notificado na injunção, desde que o faça antes da sua primeira intervenção no [procedimento de injunção]. Deve, depois, apresentar (…) oposição no procedimento de injunção, alegando a exceção de preterição do tribunal arbitral, uma vez que, nesse momento, já existe convenção de arbitragem [potestativa] (…) A empresa pode desistir da ação ou, se não o fizer, o juiz deve absolver o réu da instância, tendo em conta a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral – arts. 96.º-b) e 577-a) do CPC”[10].

Note-se que, caso o demandante-injungido não invoque a exceção de preterição de tribunal arbitral (necessário) aquando da apresentação de oposição à injunção, tal implica a revogação tácita do ato, antes praticado, de sujeição do litígio à arbitragem de conflitos de consumo. Por outras palavras, com a apresentação de oposição à injunção nesses termos, o consumidor adota comportamento concludente no sentido da submissão do seu litígio a tribunal estadual, o que importa a perda de competência do tribunal arbitral para o julgamento da demanda[11].

3) Reclamação de consumo apresentada pelo consumidor junto do centro de arbitragem e notificada ao profissional depois de oposição à injunção apresentada pelo demandante-injungido

Por sua vez, no cenário ora em equação, considerando que a dedução de oposição à injunção importa a apresentação dos autos à distribuição que imediatamente se seguir em tribunal estadual (arts. 16.º-1 e 17.º-1 do Anexo ao DL n.º 269/98) – e a consequente transmutação do procedimento de injunção em ação declarativa –, o que é objeto de notificação ao réu pelo BNI[12], cremos que, aqui, de modo diverso, o centro de arbitragem deverá equacionar a verificação da exceção de litispendência com a ação judicial e, por via disso, concluir pela extinção do processo de RALC sem apreciação do mérito da causa (cf. art. 11.º-1-c) da Lei n.º 144/2015).

4) Reclamação de consumo apresentada pelo consumidor junto do centro de arbitragem depois de aposta fórmula executória ao requerimento injuntivo, por não apresentação de oposição à injunção, no prazo concedido para o efeito (art. 14.º-1 do Anexo ao DL n.º 269/98)

Finalmente, na hipótese que se descreve imediatamente acima, em linha com o que já preconizámos acerca da natureza jurídica do procedimento de injunção, forçoso é concluir que não se revela possível a formação de caso julgado material naquele procedimento, na medida em que nenhuma decisão jurisdicional de mérito é nele adotada, nem nenhum acolhimento legal se encontra para a tentativa de equiparação do ato de aposição de fórmula executória pelo secretário judicial a uma proclamação do Direito para o caso concreto, visto que tal ato se traduz num mero controlo “tabeliónico”[13] dos requisitos formais e objetivos previstos no DL n.º 269/98.

Assim, secundamos o entendimento de acordo com o qual a existência de um título executivo consistente em requerimento de injunção (e ao qual tenha sido aposta fórmula executória) e relativo a uma qualquer obrigação pecuniária emergente de contrato não impede o devedor de instaurar uma ação na jurisdição arbitral – ainda que os meios de defesa invocáveis possam resultar limitados pelo efeito preclusivo previsto no art. 14.º-A do Anexo ao DL n.º 269/98[14][15] –, sem que tal implique ou envolva qualquer julgamento a respeito da validade do referido título executivo[16]. E não se diga, em sentido contrário, que a ação arbitral não é o meio adequado para o devedor apresentar os seus meios de defesa, devendo antes fazê-lo em sede de oposição à execução, pois, se fosse de acolher idêntica compreensão, na eventualidade de nunca haver lugar à propositura de tal processo executivo, então o devedor, na prática, acabaria por se ver impedido de reagir perante um tribunal e colocar termo à situação de dúvida sobre a existência ou inexistência do direito do credor.

Em abono da posição que perfilhamos, para a qual a questão da validade do título executivo não judicial apenas releva no plano do processo executivo que, com base nele, seja instaurado, convocamos o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 264/2015, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do art. 857.º-1 do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho[17], “quando interpretada no sentido de limitar os fundamentos de oposição a execução[18] instaurada com base em requerimentos de injunção a qual foi aposta a fórmula executória”, pelo que a referida norma da lei processual civil postula atualmente, com a alteração operada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, que “[s]e a execução se fundar em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, para além dos fundamentos previstos no artigo 729.º[19], aplicados com as devidas adaptações, podem invocar-se nos embargos os meios de defesa que não devam considerar-se precludidos, nos termos do artigo 14.º-A do regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª Instância, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, na sua redação atual”.


[1] Como se referiu aqui, nos centros de arbitragem de conflitos de consumo vigora uma lógica de “multi-step dispute resolution”, surgindo a mediação como fase prévia, seguida da conciliação e da arbitragem.

[2] O regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15.000 – procedimento de injunção e Ação Especial para o Cumprimento de Obrigações Pecuniárias Emergentes de Contratos (AECOP) – encontra-se previsto no Anexo ao DL n.º 269/98, de 1 de setembro.

[3] Embora não relevando para o objeto do presente texto, cumpre referir que, nos termos do art. 10.º-1 do DL n.º 62/2013, de 10 de maio, “[o] atraso de pagamento em transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, [também] confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida”.

[4] Exceto se, em ambas as ações, a citação tiver sido feita no mesmo dia, caso em que a ordem das ações é determinada pela ordem de entrada das respetivas petições iniciais (art. 582.º-3 do CPC).

[5] Sobre o caso julgado material, instituto que pode ser analisado numa dupla perspetiva – como exceção de caso julgado e como autoridade de caso julgado –, vide Miguel Teixeira de Sousa, “O objecto da sentença e o caso julgado material (O estudo sobre a funcionalidade processual)”, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 325, pp. 176 e 179.

[6] No que tange aos limites objetivos do caso julgado, embora alguma doutrina qualificada, sustentando uma compreensão restritiva, circunscreva a eficácia do caso julgado à parte injuntiva da decisão, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem adotando, de forma pacífica e constante, um entendimento mais amplo do alcance do caso julgado, considerando que os “precisos limites e termos em que [a sentença] julga” (art. 621.º do CPC) abrangem não só a conclusão do silogismo judiciário, mas também todas as questões e exceções suscitadas e solucionadas, ainda que implicitamente, na sentença, que funcionam como premissas necessárias e fundamentadoras da decisão final – cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06.06.2016, proferido no Processo n.º 1226/15.8T8PNF.P1, com vastas referências doutrinais e jurisprudenciais. Note-se que o efeito preclusivo do caso julgado conhece limites temporais, visto que a sentença só é válida rebus sic stantibus, pelo que a sua força se impõe enquanto se mantiverem os pressupostos que a determinaram (João de Castro Mendes, Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, pp. 178 e ss.).

[7] Correspondente ao atual art. 731.º do CPC.

[8] Sumário do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 95-399-2 de 27.06.1995, proferido no Processo n.º 94-0440.

[9] Sumário do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 95-654-1 de 21.11.1995, proferido no Processo n.º 95-0213.

[10] Neste sentido, Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2019, pp. 190-191.

[11] Assim, a Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto – Tribunal Arbitral de Consumo de 28.08.2015, proferida no Processo n.º 1219/2015, Relator: Paulo Duarte.

[12] Sendo devido, nesse caso, o pagamento de taxa de justiça pelo autor e pelo réu, no prazo de 10 dias a contar da data da distribuição – descontando-se, no caso do autor, o valor pago pela apresentação do requerimento de injunção (art. 7.º-6 do Regulamento das Custas Processuais).

[13] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.12.2018, proferido no Processo n.º 96/18.9T8CBR-A.C1.

[14] “Artigo 14.º-A (Efeito cominatório da falta de dedução da oposição)

1. Se o requerido, pessoalmente notificado por alguma das formas previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 225.º do Código de Processo Civil e devidamente advertido do efeito cominatório estabelecido no presente artigo, não deduzir oposição, ficam precludidos os meios de defesa que nela poderiam ter sido invocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

2. A preclusão prevista no número anterior não abrange:

a) A alegação do uso indevido do procedimento de injunção ou da ocorrência de outras exceções dilatórias de conhecimento oficioso;

b) A alegação dos fundamentos de embargos de executado enumerados no artigo 729.º do Código de Processo Civil, que sejam compatíveis com o procedimento de injunção;

c) A invocação da existência de cláusulas contratuais gerais ilegais ou abusivas;

d) Qualquer exceção perentória que teria sido possível invocar na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente.”

[15] Sem prejuízo da remissão expressa operada pela norma do art. 857.º-1 do CPC para o art. 14.º-A do Anexo ao DL n.º 269/98, cremos que este último artigo tem um âmbito de aplicação mais alargado, não se circunscrevendo à oposição à execução, antes se estendendo a todos os meios de reação/tutela jurisdicional possíveis à disposição do devedor.

[16] Neste sentido, a Sentença do CIAB – Tribunal Arbitral de Consumo de 13.09.2018, proferida no Processo n.º 1592/2018, Relator: Paulo Duarte.

[17] Na sua redação primitiva, a norma do art. 857.º-1 do CPC rezava nos seguintes termos: “Se a execução se fundar em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, apenas podem ser alegados os fundamentos de embargos previstos no artigo 729.º, com as devidas adaptações, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.”

[18] Como se esclarece no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.03.2019, proferido no Processo n.º 751/16.8T8LSB.L2.S1, a oposição à execução mediante embargos reveste a estrutura de ação declarativa autónoma de simples apreciação, cujo objeto é definido, na respetiva petição inicial, pelo executado, valendo cada um dos fundamentos materiais invocados como verdadeiras causas de pedir.

[19] Norma em que se elencam os fundamentos taxativos de oposição à execução baseada em sentença.

Carlos Ferreira de Almeida e o Direito do Consumo

Recensão

Não tive a honra de ser aluno do Professor Carlos Ferreira de Almeida nem sequer de o conhecer pessoalmente. Sei, porém, que o seu desaparecimento, no início de fevereiro último, marcou, de modo indelével, uma plêiade de juristas (e não juristas) que tiveram o privilégio de conviver e beber da inteligência e sabedoria do Professor e, como tal, guardam uma imensa saudade do insigne Mestre.

Em particular, colegas e estudantes da NOVA School of Law conservam uma dívida de gratidão para com o Professor Carlos Ferreira de Almeida por, ao lado de Diogo Freitas do Amaral, ter contribuído decisivamente para a criação desta Faculdade de Direito, integrando a sua Comissão Instaladora, no âmbito da qual assumiu um papel crucial na criação do seu curso de Doutoramento – então, uma novidade no cursus honorum dos académicos das Leis –, e na fundação da Unidade de Mediação e Acompanhamentos de Conflitos de Consumo (UMAC), que antecedeu ao NOVA Consumer Lab.

Como sublinhou Marcelo Rebelo de Sousa em mensagem evocativa publicada no sítio da internet da Presidência da República, a par de “diversas funções públicas de relevo” que desempenhou, o Professor Carlos Ferreira de Almeida foi um “jurista distinto”, “por todos respeitado e admirado pelas suas qualidades científicas e pedagógicas”, que, como todos os grandes cultores das Artes e das Letras, para lá da lei da morte, deixa uma “vasta e marcante obra” literária, que continuará a formar gerações de estudantes e profissionais do Direito.

Neste sentido, reportando-me à experiência pessoal, comecei a contactar com a produção científica do Professor Carlos Ferreira de Almeida no início do meu estágio de advocacia, pela mão do meu patrono, Paulo Duarte, por sorte um reconhecido estudioso e entusiasta do Direito do Consumo, que, em inúmeras ocasiões, me incitou a mergulhar na leitura e análise atentas de alguns dos principais manuais do aqui homenageado, nomeadamente os vários volumes da obra “Contratos” e a sua tese de Doutoramento “Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico”, publicada em dois volumes, que, nas palavras do meu patrono, constitui um dos maiores monumentos da ciência jurídica portuguesa, de passagem obrigatória na formação contínua de qualquer jurista luso.

Mais recentemente, graças ao contributo inestimável do Professor Jorge Morais Carvalho, tive a oportunidade de proceder à leitura integral de outras duas obras que, em diferentes estádios da afirmação do Direito do Consumo, se assumem como verdadeiros marcos incontornáveis na doutrina jurídico-consumerística, a saber: “Os Direitos dos Consumidores”, publicado em 1982, e “Direito do Consumo”, dado à estampa em 2005, ambos editados pela Almedina.

Assumidamente influenciado pelas lições do grego Simitis (“Verbraucherschutz, Schlagwort oder Rechtsprinzip?” – numa tradução livre, “Proteção do consumidor, bordão ou princípio jurídico?”) e do alemão Reich (“Markt und Recht: Theorie u. Praxis d. Wirtschaftsrechts in d. Bundesrepublik Deutschland – numa tradução livre, “Mercado e Direito: Teoria e Prática do Direito Empresarial na República Federal da Alemanha”), em 1982, Ferreira de Almeida brindou-nos com a primeira obra jurídica de fundo dedicada aos direitos dos consumidores (e não ao Direito do Consumidor, designação que sempre rejeitou, por circunscrever o tratamento das situações jurídicas de consumo a um dos conceitos subjetivos – que não o único – nelas considerados). A partir da leitura e exame desta obra, conseguimos percecionar as preocupações emergentes nos finais dos anos 70 e inícios dos anos 80, espelhadas, superlativamente, pelos textos da “Carta do Conselho da Europa sobre a Proteção do Consumidor” (Resolução n.º 543 de 17 de maio de 1973), do “Programa Preliminar da Comunidade Económica Europeia para uma política de proteção e de informação dos consumidores” (Resolução do Conselho de 14 de abril de 1975) e do “Segundo Programa da Comunidade Económica Europeia para uma Política de Proteção e de Informação dos Consumidores” (Resolução do Conselho de 19 de maio de 1981) – cláusulas abusivas em contratos-tipo; vendas agressivas; condições abusivas de crédito; vendas de bens não solicitados; responsabilidade do produtor (esta última, ainda hoje, com um regime objetivamente insatisfatório) –, bem como o catálogo de direitos fundamentais neles previstos, o qual serviu de base para a organização sistemática das matérias de direito substantivo e processual abordadas, sempre com encadeamento lógico, pelo Professor.

Numa breve afloração do conteúdo da obra ora em apreço e de entre os muitos aspetos dignos de destaque, pela sua relevância teórico-prática (aqui, considerando que o Professor nunca acreditou numa distinção rígida entre teoria e prática, seja no ensino universitário, seja na investigação científica, a qual, na sua perspetiva, sempre devia versar sobre situações reais da vida quotidiana em detrimento dos artificialismos que, amiúde, apaixonam os académicos, encerrados nas suas torres de marfim), tomamos a liberdade de enfatizar os seguintes: a exposição dos sistemas de controlo (judicial, administrativo e misto) das cláusulas abusivas integradas nos contratos-tipo, suas vantagens e deméritos, a qual reveste de extremo interesse para a análise crítica da solução normativa do art. 3.º da Lei n.º 32/2021, de 27 de maio, ainda a aguardar a necessária regulamentação; a exaltação da lesividade para o consumidor associada à prática de preços impostos verticalmente e de preços aconselhados, assim como dos limites à liberdade de fixação dos preços, nomeadamente, a sua determinabilidade objetiva, a não discriminação entre clientes (hoje, frequentemente posta em crise, com a prática de personalização de preços) e a proibição do “dumping”; a equiparação “tout court” do cumprimento defeituoso ao incumprimento contratual e o apelo à noção de desconformidade em sentido lato (por influência da Convenção de Haia de 1964 sobre a Compra e Venda e a Convenção de Viena sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias de 1980) para o tratamento da venda de bens de consumo defeituosos; a consideração da assistência pós-venda satisfatória como dever integrado no normal cumprimento dos contratos de fornecimento de bens de consumo; a demonstração dos inconvenientes da aplicação “tout court” dos princípios fundamentais do processo civil à resolução de litígios de consumo, concretamente, o princípio dispositivo, o princípio da igualdade (uma “pura abstração”) e as regras gerais de repartição do ónus da prova; a preocupação em salientar a inibição dos consumidores perante a ação judicial, determinada, esta, pelas despesas com o processo, pela morosidade e pelo “calão jurídico profissional”; a preocupação em abordar e sustentar a importância de criação de estruturas especializadas para resolução dos litígios de consumo com tramitação processual simplificada (além de simplificação das provas e maior peso do princípio inquisitório), que privilegiem a definição da competência territorial em função do domicílio do consumidor e que não sirvam de instrumento ao serviço da cobrança de dívidas pelas empresas; a constatação do papel de destaque (então) conferido às associações de defesa dos consumidores (sobretudo as de estatuto pleno) na tutela coletiva dos direitos do sujeito mais débil da relação jurídica de consumo e ao nível da participação na tomada de decisões político-legislativas; a crítica à desconsideração do pequeno valor que, tipicamente, assumem as ações relativas a litígios de consumo para efeitos de assistência judiciária, já então marcada pela incapacidade de assegurar compensação adequada aos advogados envolvidos no sistema de acesso aos direito e aos tribunais; a inadmissibilidade do “dolus bonus” nos negócios jurídicos de consumo; o destaque e tratamento conferidos ao elemento relacional para caracterizar o negócio jurídico (e não apenas o contrato) de consumo (assim abarcando figuras como a proposta contratual, a oferta ao público, o negócio a favor de terceiro e a responsabilidade extracontratual); a promoção da extensão da relação de consumo aos membros do agregado familiar que vivem com o sujeito adquirente em economia comum (relevante, por exemplo, para a admissibilidade de ressarcimento de danos reclamados por pessoa diferente do titular do contrato de fornecimento de energia elétrica em caso de interrupção ilícita do serviço); a caracterização da natureza (tríplice) dos direitos dos consumidores consagrados na Lei de Defesa do Consumidor de 1981 como “direitos económicos gerais” em relação ao Estado (e que dele requerem a sua concretização como incumbências prioritárias, nos termos da alínea i) do art. 81.º da CRP), “direitos coletivos” (na promoção e tutela de interesses difusos) e direitos subjetivos (oponíveis aos profissionais, nas relações diretas com eles mantidas); e o não reconhecimento de autonomia científica ao Direito do Consumo, antes tratando-o como um tema de Direito Económico (quanto aos “direitos económicos gerais” e aos “direitos coletivos”) e de Direito Comercial e Civil (quanto aos “direitos subjetivos”).

Volvidos 23 anos, embora continuando a negar a sua autonomia científica, o Professor Carlos Ferreira de Almeida embarcou em nova deambulação pelo Direito Privado do Consumo, que veio a conquistar um merecido lugar de entre os manuais obrigatórios no estudo universitário das relações jurídico-consumerísticas. Adotando uma estrutura peculiar na exposição das matérias, diversa daquelas que, habitualmente, encontramos em manuais similares, mas que conserva, a todo o momento, uma conexão e encadeamento lógicos entre temas, é de imperiosa justiça enaltecer, em primeiro lugar, a preocupação do Professor em desenvolver, sempre que pertinentes, exercícios de Direito Comparado, seja para compreensão dos antecedentes legislativos que inspiraram os diplomas em análise, seja para retratar as soluções vigentes nos principais ordenamentos das famílias romano-germânica e anglo-saxónica.

Ademais, a par de outros méritos de que a obra é merecidamente credora, ousamos destacar: o aprumo e rigor técnico-jurídico no tratamento da figura do direito de arrependimento, sua natureza e efeitos, consoante o modelo (de eficácia suspensiva ou de eficácia resolúvel) em causa, distinguindo-a de realidades afins, particularmente, a faculdade de retratação; a preocupação em exaltar que os habitualmente identificados deveres de comunicação e de informação, consagrados nos arts. 5.º e 6.º do DL n.º 446/85, de 25 de outubro, se assumem, na verdade, como ónus, cujo incumprimento determina a consequência desfavorável da não inclusão, no contrato, de cláusulas contratuais (gerais); a arrumação dos padrões relevantes para a qualidade da coisa vendida, distinguindo entre requisitos objetivos e subjetivos, em termos próximos daqueles que, previsivelmente, passarão a constar do decreto-lei de transposição das Diretivas 2019/770 e 2019/771, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019, sobre certos aspetos relativos aos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais e relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens, respetivamente; o tratamento das mensagens publicitárias como cláusulas contratuais gerais para efeitos da sua inserção nos contratos singulares (art. 2.º do DL n.º 446/85), o que parece ter sido ignorado pelo legislador nacional aquando da adoção da já referida Lei n.º 32/2021; a caracterização da conformidade, com recurso a uma fórmula de suma eloquência, como relação deôntica entre o ser (referente) e o dever ser (referência), reconduzindo-a ao cumprimento da obrigação de entrega; e a aplicação da figura da promessa pública para caracterização da declaração ou compromisso de garantia comercial/voluntária.

Uma derradeira consideração importa dedicar ao prognóstico desenvolvido nesta segunda obra quanto ao futuro do Direito do Consumo, entre a sua autonomização e a diluição no direito comum, que suscitou em mim um interesse particular, atenta a evolução conhecida desde a elaboração da obra, nomeadamente quanto ao conceito de consumidor (predominando, aqui, a conceção estrita, pelo menos ao nível do Direito da União Europeia, em que releva o elemento subjetivo) e quanto ao caminho trilhado no sentido da harmonização legislativa máxima (ainda que com recurso a diretivas comunitárias), factores que, segundo o autor, concorrem para o progresso em caminhos opostos.

Remetendo-me à minha humilde condição de curioso por algumas das temáticas acima afloradas, que captam a atenção e alimentam a paixão dos verdadeiros cultores do Direito do Consumo, por tudo quanto expus (e muito mais havia a exaltar!), vergo-me perante a memória do Professor Carlos Ferreira do Almeida e convido todos quantos seguem o projeto NOVA Consumer Lab nas plataformas digitais a escutarem (ou voltarem a escutar) a entrevista que o insigne Mestre concedeu ao NOVA Consumer Podcast, no ano transato, a qual constitui um valioso e inspirador documento para todos os membros desta equipa.

Até sempre, Professor!

A reparação de bem por terceiro, a expensas do devedor, na empreitada de consumo – um caso prático

Doutrina, Jurisprudência

Imagine-se o seguinte caso prático[1]:

“A” é proprietário de um veículo motociclo da marca Cavallino Rampante, modelo XPTO, adquirido no ano de 2015. Em 16.03.2021, a Cavallino Rampante Motor S.p.A. anunciou o recall de um conjunto de motociclos do modelo XPTO, entre os quais o de “A”, por força da deteção de uma desconformidade no processo de fabrico das viaturas, cuja resolução passaria por uma atualização técnica – substituição da caixa de velocidades. Nessa sequência, em 25.03.2021, “A” contactou “B”, centro de assistência oficial da Cavallino Rampante, para realização da atualização técnica no seu motociclo, serviço que teve lugar em 30.03.2021.

Em 11.04.2021, no decurso da primeira deslocação descrita com o motociclo após a atualização técnica, “A” não conseguiu engrenar a 3.ª e 5.ª velocidades, o que não o impediu de completar a viagem nem levou “A” a entregar o motociclo a “B” para verificação da causa da anomalia. Em 17.04.2021, “A” participou com o motociclo num passeio de amigos e, nessa ocasião, com o motociclo em andamento, “A” voltou a não conseguir engrenar a 3.ª e 5.ª velocidades, tendo ficado com a sensação de que a viatura estava em “ponto morto” entre mudanças. Ato contínuo, “A” decidiu imobilizar o veículo e contactar a Almeida e Filhos, Lda. para efetuar o reboque do motociclo e sua condução até às instalações de “D”, a fim de esta última efetuar um diagnóstico ao estado da viatura.

No âmbito do diagnóstico ao estado do motociclo de “A” e com a autorização deste para proceder à desmontagem da caixa de velocidades da viatura, “D” verificou que a caixa de velocidades apresentava forquilha em mau estado (“empenada”). Em 10.05.2021, a pedido de “A”, “D” elaborou orçamento para substituição da caixa de velocidades do motociclo, com o valor total de € 700,00 (setecentos euros), acrescido de IVA à taxa legal em vigor. O diagnóstico ao veículo foi efetuado sem o conhecimento de “B”.

“A” pretende que “B” seja condenado a assumir o custo total da reparação do veículo motociclo, a efetuar por “D”. Tem “A” direito à indemnização peticionada?

O DL n.º 67/2003 (“RVBC”)[2] estabelece um regime especial aplicável à compra e venda de bens de consumo, bem como aos bens de consumo fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços e, ainda, à locação de bens de consumo (art. 1.º-A)[3]. Enquanto corolário do princípio pacta sunt servanda, consagrado no art. 406.º do Código Civil, àquele que se dedica profissionalmente à venda de bens ou à prestação de serviços cumpre assegurar que a sua prestação material é conforme com o contrato celebrado com o consumidor, isto é, garantir que o conteúdo da sua obrigação, com as características e qualidades acordadas com o contraente mais débil da relação jurídica, encontra identidade no bem efetivamente entregue ou no serviço, de facto, prestado (arts. 2.º-1 e 3.º-1).

Assim, mediante alegação e prova da ocorrência, no momento da entrega do bem pelo vendedor (ou prestador de serviços), de facto(s) que preencha(m) uma ou mais das hipóteses enunciadas no art. 2.º-2 do RVBC[4], o consumidor pode prevalecer-se de qualquer um dos direitos previstos no art. 4.º-1 do RVBC, não sujeitos a qualquer hierarquia no seu exercício (art. 4.º-5, a não ser que tal se revele impossível ou constitua abuso de direito), a saber, os direitos de reparação e substituição do bem sem quaisquer encargos, o direito de redução adequada do preço e do direito de resolução do contrato – e, cumulativamente, o direito de indemnização por perdas e danos resultantes de falta culposa do cumprimento da obrigação de conformidade (arts. 12.º-1 do RVBC e 798.º do Código Civil) –, quando a falta de conformidade se manifestar dentro do prazo da garantia legal de conformidade de dois ou de cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respetivamente, de coisa móvel ou imóvel (art. 5.º-1).

E, facilitando a árdua tarefa de demonstração de que o vício ou defeito pré-existia ao momento da entrega (entenda-se: do fornecimento material) do bem, com a qual está onerado o consumidor, o legislador consagrou uma presunção de anterioridade, de acordo com a qual “[a]s faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respetivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa [por se tratar de um bem de desgaste rápido ou sujeito a um prazo de validade] ou com as características da falta de conformidade [quando resultar de forma evidente que esta não se ficou a dever a circunstâncias relativas ao próprio bem e à sua utilização segundo os termos normais ou fixados pelas partes]” – art. 3.º-2 do RVBC[5] [6].

Por sua vez, ao profissional não basta a alegação e prova de que o mau estado e/ou o mau funcionamento do bem de consumo inexistiam no momento da celebração do contrato ou no momento da entrega do bem ao consumidor ou, até, que o bem funcionou normalmente durante algum tempo. Excetuando os casos em que o consumidor tem conhecimento do defeito ou ónus que incide sobre o objeto prestado ou tal limitação do bem tenha sido expressamente ventilada entre as partes em momento prévio à celebração do negócio (art. 2.º-3), a ilisão da presunção de anterioridade e consequente afastamento da garantia legal de conformidade dependem da alegação e prova da ocorrência de um facto posterior ao momento da entrega, imputável ao consumidor (e.g. por falta de diligência ou violação de deveres de cuidado), a terceiro ou devida a caso fortuito, do qual tenha resultado diretamente a falta de conformidade,não podendo o mau uso servir para evitar a responsabilidade do vendedor em relação a outras anomalias manifestadas pelo bem e que em nada se relacionem com o dito manuseamento indevido.

Para tal, afigura-se indiscutível que o profissional (no caso, o empreiteiro “B”) tem o legítimo interesse de, por si ou através de terceiro pelo mesmo contratado, proceder à reparação da coisa por ele modificada (no caso, o motociclo, no âmbito do recall). Afinal, se o empreiteiro se obrigou perante o consumidor (no caso, o dono da obra “A”) a executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, em caso de denúncia de desconformidade pelo segundo, deve o primeiro gozar da faculdade de proporcionar àquele o resultado da sua obrigação, o que implica ter a possibilidade de, num primeiro momento, conferir o estado do bem e, se se confirmar a existência da dita desconformidade, proceder à reposição da conformidade com o que foi acordado.

Neste seguimento, em face de uma situação de cumprimento defeituoso de contrato de empreitada, em regra, não assiste ao dono da obra o direito de, por si ou por intermédio de terceiro, eliminar a desconformidade a expensas do empreiteiro, exigindo deste o imediato pagamento da quantia necessária à reparação da falta de conformidade entre a execução e o conteúdo do contrato.

Tanto assim que, como resulta do regime previsto nos arts. 1221.º e seguintes do Código Civil, em termos consentâneos com o princípio da prevalência da reconstituição natural sobre a indemnização por sucedâneo pecuniário (arts. 562.º e 566.º-1 do Código Civil), o direito a indemnização (art. 1223.º do Código Civil) reveste caráter subsidiário e desempenha uma função complementar (em relação a prejuízos que não tenham sido totalmente ressarcidos) aos demais meios jurídicos acessíveis ao dono da obra, hierarquicamente dispostos e oponíveis ao empreiteiro, a saber, o direito à eliminação dos defeitos, o direito à substituição da prestação (construção da obra de novo) e o direito à redução do preço (ou o direito à resolução do contrato, em caso de inadequação da obra ao fim a que se destina)[7].

Neste sentido, o princípio-regra que provém do regime civilístico da empreitada só cederá em casos de manifesta urgência ou em face de recusa ou de não realização, em prazo razoável, da reparação por parte do empreiteiro, de molde a evitar a produção de maiores danos[8]. Nestas hipóteses, é de admitir que o dono da obra, por si ou através de terceiro, promova a reposição da conformidade por meio de reparação e depois exija o reembolso das despesas assumidas ao empreiteiro.

Ora, revertendo ao caso em apreço, verifica-se que o veículo motociclo de “A” manifestou uma anomalia mecânica na caixa de velocidades (deixou de engrenar as 3.ª e 5.ª mudanças) – a qual foi substituída no âmbito da atualização técnica realizada em 30.03.2021 –, em momento posterior à entrega da viatura modificada por “B”, sendo que, em abstrato, mediante uma utilização prudente e diligente do veículo, a anomalia nele detetada não é incompatível com a natureza da coisa nem com as características da falta de conformidade. Porém, ao enviar o motociclo para “D”, a fim de este efetuar diagnóstico ao estado da viatura, que envolveu a desmontagem da caixa de velocidades (e não uma simples avaliação visual), sem o conhecimento e, logo, sem o assentimento prévio de “B” (isto já depois da ocorrência de um primeiro incidente com o mesmo veículo motociclo em 11.04.2021, sem que “A” tenha tomado qualquer diligência para aquilatar a causa do então sucedido, nomeadamente submetendo a viatura a análise por “B”), “A” inviabilizou o exercício, por “B”, da faculdade de verificar o exato estado do bem após a manifestação da alegada desconformidade e atestar, pelos seus próprios meios (ou por terceiro a quem “B” cometesse tal tarefa), a existência da anomalia, para, em função de tal análise, se fosse caso disso, proceder à reparação da coisa por si modificada.

Face ao exposto, concluímos que “A” não tem o direito de se substituir a “B” e mandar proceder a reparação do veículo por terceiro (“D”) e depois exigir-lhe o custo dessa reparação.


[1] Inspirado no caso decidido pela Sentença do CIAB, de 28.09.2020, proferida no Processo n.º 68/2020, de que fui relator, e no caso decidido pela Sentença do CICAP, de 05.02.2016, proferida no Processo n.º 1669/2015, de que foi relator Rui Saavedra.

[2] Pertencem a este diploma as normas que, sem indicação do respetivo diploma, adiante se mencionarem.

[3] Em relação ao contrato de empreitada, vigora um entendimento claramente maioritário na doutrina, que acompanhamos, segundo o qual, estando em causa um contrato de empreitada que tem por objeto a reparação ou modificação (ou limpeza) de um bem já existente (sem que essa intervenção se destine a torna-lo num bem que possa ser qualificado como novo), tal relação jurídica extravasa o âmbito objetivo de aplicação do RVBC. Sem embargo da alteração legislativa operada àquele diploma pelo DL n.º 84/2008, incluir, inovadoramente e de forma expressa, o contrato de empreitada de bens de consumo no universo de vínculos negociais sujeitos à sua malha normativa, importa atentar no facto de a letra da norma do n.º 2 do art. 1.º-A se referir, precisamente e modo não despiciendo, “aos bens de consumo fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada (…)” [sublinhado nosso], visando desta forma, segundo cremos, confinar o âmbito objetivo de aplicação do RVBC apenas ao contrato de empreitada (e outras prestações de serviço) em que é entregue ao consumidor um bem de que ele não dispunha anteriormente. Neste sentido, Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, Almedina, 2020, p. 278.

[4] Embora resulte da letra da norma o recurso à técnica legislativa da presunção iuris tantum (arts. 349.º e 350.º-1 e 2 do Código Civil), acompanhamos Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, Almedina, 2020, p. 287, quando assinala que, no bom rigor jurídico, não se consagra ali uma genuína presunção legal de desconformidade, na medida em que “a verificação da desconformidade por referência aos critérios definidos afasta a possibilidade de prova em contrário, não sendo possível ao profissional provar a conformidade de um bem desconforme”.

[5] Jorge Morais Carvalho, Micael Martins Teixeira, Duas presunções que não são presunções: a desconformidade na venda de bens de consumo em Portugal, Revista de Direito do Consumidor, n.º 115 (janeiro – fevereiro de 2018), pp. 311-330. Assinalam estes autores que também a dita “presunção de anterioridade da desconformidade” não se trata, summo rigore, de uma presunção legal, visto que “(…) a ocorrência do facto base da suposta presunção de anterioridade – o facto demonstrativo da desconformidade – não permite necessariamente induzir, com base nas regras da experiência, que esse facto já se verificava no momento da entrega do bem – facto suposta, mas erradamente presumido.”

[6] Por via do Acórdão de 4 de junho de 2015, proferido no Processo n.º C-497/13 (Froukje Faber contra Autobedrijf Hazet Ochten BV), o TJUE declarou que “…o consumidor deve alegar e fazer prova de que o bem vendido não está em conformidade com o contrato em causa na medida em que, por exemplo, não possui as qualidades acordadas no referido contrato ou ainda é impróprio para o uso habitualmente esperado para esse tipo de bem. O consumidor está obrigado a provar a existência da falta [de conformidade]. Não está obrigado a provar a causa da mesma nem que a sua origem é imputável ao vendedor.”

[7] Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Coleção Teses, Almedina, pp. 347 e 353.

[8] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31.05.2012; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29.04.2019.

A ressarcibilidade de danos não patrimoniais no Direito Civil e no Direito do Consumo

Doutrina

Durante muito tempo, a doutrina viu-se animada por um intenso debate sobre a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais (também designados “danos morais”), atenta a sua insuscetibilidade de avaliação em dinheiro, a inelutável subjetividade inerente à sua valoração e o risco de arbitrariedade na fixação do valor a pagar pelo lesante. Ainda assim, sob pena de afronta ao valor e virtude cardeal da justiça e atento o princípio-regra de tutela geral da personalidade previsto no art. 70.º do Código Civil, não podiam os interesses imateriais permanecer desprovidos de qualquer tutela resssarcitória.

Pelo mesmo fundamento relevante, também constitui, atualmente, entendimento pacífico, após uma acesa querela doutrinal e jurisprudencial, que deve proceder-se à aplicação analógica do princípio da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, expresso na secção do Código Civil dedicada à responsabilidade extracontratual (art. 496.º), à responsabilidade contratual. Já no âmbito da disciplina especialmente aplicável às relações jurídicas de consumo, o legislador assumiu inequivocamente posição sobre a referida controvérsia, determinando no art. 12.º-1 da Lei n.º 24/96, que “[o] consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos”.

Assente que está a reparabilidade dos danos não patrimoniais, importa sublinhar que, nos termos do art. 496.º-1 do Código Civil, o arbitramento de uma compensação (e não de uma indemnização, dado tratar-se de danos insuscetíveis de eliminação por meio de reposição ou reconstituição natural ou de conversão direta numa quantia pecuniária equivalente) só se coloca em relação aos prejuízos que, pela sua gravidade, justifiquem a tutela do direito (art. 496.º-1 do Código Civil).

Ora, como ensina Antunes Varela, aquela “gravidade” deve “medir-se por um padrão objetivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de fatores subjetivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)”, pelo que “o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado”[1]. Por conseguinte, têm-se por “irrelevantes os pequenos incómodos ou contrariedades, assim como os sofrimentos ou desgostos que resultem de uma sensibilidade anómala”[2].

De forma algo diversa, no Direito do Consumo, atenta a assimetria de formação e de informação que notabiliza o relacionamento entre consumidores e profissionais, os eventuais transtornos, incómodos, angústia e desgosto do consumidor, ainda que com uma expressão económica diminuta, desde que devidamente provados e não derivados de uma sensibilidade particularmente aguçada, são compensáveis[3].

Neste domínio, por revestir contornos de transtorno e incomodidade bastantes para ser juridicamente protegida pelo mecanismo reparatório da responsabilidade civil quando dela brotem danos autónomos, destaca-se a privação da acessibilidade dos serviços de interesse económico geral de energia elétrica, água e gás, cuja prestação deve obedecer a elevados padrões de qualidade (art. 7.º da Lei n.º 23/96) e se revela essencial para o consumidor (e seu agregado familiar) realizar a higiene diária, confecionar as refeições quotidianas e desenvolver outras tarefas domésticas no local de consumo[4].

Ressalva-se, contudo, que, conforme enfatizado, entre outras, na Sentença do CICAP de 20.08.2018, proferida no Processo n.º 121/2018, Relator: Paulo Duarte, “os transtornos, incomodidades e eventuais despesas ligadas ao próprio litígio e à atividade extraprocessual em que se concretiza a sua constituição, desenvolvimento e resolução não estão em relação de causalidade adequada com o ilícito contratual que está na sua origem. Há que distinguir dois planos: o plano das consequências do próprio ilícito; e o plano das incidências do litígio que se gera, por iniciativa do lesado, para obter a reparação dessas consequências danosas. O nexo de causalidade juridicamente relevante (enquanto pressuposto da obrigação de indemnizar, nos termos do artigo 563.º do Código Civil) opera no primeiro plano, mas não no segundo”.

Isto posto, postula o n.º 4 do artigo 496.º do Código Civil que “[o] montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º (…)”, a saber, “o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso”.

A este propósito, cumpre notar que o juízo de equidade, ao promover uma justiça individualizadora, atenta às particularidades do caso concreto, encerra necessariamente uma margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso àquele critério de fixação do valor da compensação. Tal não significa, contudo, a concessão de um poder arbitrário e insindicável ao julgador, devendo o mesmo obediência, em última instância, ao princípio da igualdade material (tratar de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual).

Sem prejuízo, ultrapassada que está a adoção de um critério miserabilista na fixação do montante equitativo da compensação por danos não patrimoniais, não deve, contudo, o julgador ir além do arbitramento de uma quantia que, “dentro dos limites que foi possível ter por provados”, se revele suficientemente elevada para proporcionar ao lesado a necessária reparação, por apelo a “parâmetros de razoabilidade, adequação e justa proporção” e “tendo em conta os dados da experiência comum e um padrão de normal diligência”[5]. Como tal, não é de incluir na compensação por danos morais os denominados “danos punitivos” (punitive damages), teleologicamente funcionalizados a castigar o profissional pela sua conduta e a servir de exemplo para práticas similares de outros agentes económicos.


[1] João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, Vol. I, 8.ª edição, Almedina, 1994, p. 617.

[2] Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9.ª edição, Almedina, 2001, p. 550.

[3] Neste sentido, a Sentença do Processo n.º 187/2018 do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Distrito de Coimbra (CACRC).

[4] Neste sentido, entre outros, a Sentença do CICAP de 06.11.2017, proferida no Processo n.º 442/2017, e a Sentença do CIAB de 26.02.2020, proferida no Processo n.º 1486/2019, de que fui relator.

[5] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.10.2014.

Aplicação no tempo da “arbitragem necessária” prevista na Lei de Defesa do Consumidor

Doutrina

Com a publicação da Lei n.º 63/2019, de 16 de agosto, em vigor desde 15.09.2019 (art. 3.º), foi alterada a redação das normas do art. 14.º da Lei de Defesa do Consumidor, nomeadamente os seus n.ºs 2 e 3. Os conflitos de consumo cujo valor não exceda a alçada dos tribunais de 1.ª instância (€ 5 000, cf. art. 44.º-1 da Lei n.º 62/2013) estão sujeitos a arbitragem necessária (rectius, arbitragem potestativa) quando, por opção expressa dos consumidores, sejam submetidos à apreciação de tribunal arbitral adstrito aos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados. Trata-se de um alargamento do âmbito da arbitragem potestativa em matéria de conflitos de consumo, até então circunscrito aos serviços públicos essenciais.

Ora, desde a entrada em vigor da Lei n.º 63/2019 e com base na norma do art. 2.º-1 da Lei n.º 144/2015 (Lei RALC) que se vem discutindo a aplicação no tempo da solução legislativa acima destacada, com particular enfoque nos seguintes critérios relevantes: a) a data de celebração do contrato de consumo (anterior ou posterior a 15.09.2019); b) a data de emergência do conflito de consumo (anterior ou posterior a 15.09.2019).

Em extrema síntese, aplicando os princípios gerais sobre a aplicação da lei no tempo plasmados no art. 12.º do Código Civil, revestiria meridiana clareza que, por apelo ao critério sob alínea a), a Lei n.º 63/2019 aplicar-se-ia aos conflitos de consumo radicados num contrato celebrado após a entrada em vigor do referido diploma. Sem prejuízo, em face do disposto pelo n.º 2 do art. 12.º do Código Civil e considerando a possibilidade de existência de situações jurídicas que tenham sido constituídas na vigência da lei anterior e que subsistam ao abrigo da nova lei (seja no caso de contratos de execução duradoura, seja mesmo no caso de contratos de execução instantânea, como seja a compra e venda de bens de consumo, em que assiste ao consumidor o exercício de um conjunto de “remédios” em caso de desconformidade do bem manifestada no prazo de garantia legal), sob pena de limitação do direito de acesso à justiça por parte dos consumidores, admitir-se-ia, em tais casos, a aplicação imediata da nova lei, desde que, conforme critério sob alínea b), o litígio de consumo ocorresse depois da entrada em vigor da Lei n.º 63/2019.

Ora, além de o entendimento acima exposto colocar ao intérprete-aplicador o problema de definir exatamente quando é que se tem por configurado um conflito de consumo (depende ou não de formalização de reclamação por parte do consumidor; carece ou não de resposta liminarmente desfavorável aos intentos do consumidor da parte do profissional), creio que o mesmo ignora o facto de as normas dos n.ºs 2 e 3 do art. 14.º da Lei n.º 24/96 revestirem cariz processual, porquanto o momento a considerar para a sua aplicação (ou não) a um caso concreto será, na verdade, o da data da entrada do requerimento de arbitragem no tribunal arbitral adstrito a centro de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizado.

E não se diga que esta outra compreensão da aplicação no tempo da Lei n.º 63/2019 importa uma afetação de expectativas do profissional, violadora do princípio da proteção da confiança (ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2.º da CRP), visto que aquela lei apenas veio facultar ao consumidor, parte mais fraca no âmbito de uma relação jurídica de consumo, “uma forma adicional mais acessível de fazer valer os seus direitos”[1].

Além de se conformar com a regra, relativa à competência dos tribunais, da aplicação imediata da nova lei processual às ações futuras (enquanto às ações pendentes se aplica a lei vigente no momento em que foram propostas), o entendimento que preconizo oferece um momento objetivo e preciso para a inclusão (ou não) do litígio no âmbito da “arbitragem necessária” prevista na Lei n.º 63/2019.

Assim, para se poder concluir que o consumidor exerceu o direito potestativo de submeter o litígio de que é parte à apreciação de tribunal arbitral adstrito a centro de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizado, com fundamento no disposto pelo art. 14.º-2 e 3 da Lei de Defesa do Consumidor e, por essa via, afirmar a competência do tribunal para conhecer, apreciar e decidir a ação arbitral, importará verificar se está em causa um “conflito de consumo” (tal como definido pela alínea h) do art. 3.º da Lei RALC[2]), se o processo de arbitragem foi instaurado em momento posterior à data da entrada em vigor da Lei n.º 63/2019 e se o valor da causa não excede os € 5 000.


[1] Como se defendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.03.2021, já comentado aqui. Como se pode ler na decisão arbitral do CASA, analisada pelo Tribunal da Relação de Lisboa nesse processo, “aquilo que a empresa poderia alegar é que a arbitragem é uma forma mais acessível ao consumidor. Porém, parece-nos que o argumento de que a parte tinha a expectativa de que a outra tivesse maior dificuldade em exigir o cumprimento não é atendível”.

[2] Embora, aqui, seguindo de perto Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2019, pp. 28-29, consideremos que “não existe qualquer fundamento objetivo que permita a aplicação de regras e princípios diferentes aos mesmos procedimentos de RALC [Resolução Alternativa de Litígios de Consumo] apenas em função do tipo contratual em causa [contrato de compra e venda ou de prestação de serviços]. Tal interpretação poderia, aliás, conduzir a um efeito contrário ao pretendido pela Diretiva RALC, reduzindo a confiança dos consumidores no mercado interno em consequência da disparidade de regras aplicáveis aos mesmos procedimentos”, justificando-se, como tal, uma “interpretação extensiva” da norma do n.º 1 do art. 2.º da Lei RALC, “que alargue o seu âmbito de aplicação aos restantes tipos contratuais”, à semelhança do que decorre da norma do n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 24/96.

A faturação da potência contratada viola o artigo 8.º da Lei dos Serviços Públicos Essenciais?

Doutrina

Em post anterior, dedicado aos 25 anos da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (LSPE), notámos que, tendo como pano de fundo o princípio da boa-fé, aquele diploma impõe às entidades prestadoras dos serviços de interesse económico geral nele elencados uma proibição de cobrança de consumos mínimos e de quaisquer outras importâncias e/ou taxas que não tenham uma correspondência direta com um encargo em que aquelas efetivamente incorram, com exceção da contribuição audiovisual[1] (art. 8.º).

A lei faz depender a repercussão no cliente final de valores diversos dos especificamente respeitantes aos consumos realizados pelo mesmo de um critério de correspetividade estrita com encargos que a entidade realmente suporta com a efetiva prestação do serviço.

Posto isto, será que a cobrança dos encargos com a potência contratada na faturação do serviço de fornecimento de energia elétrica se conforma com o imposto pelo art. 8.º da LSPE?

Para respondemos à questão, importa retomar algumas considerações já tecidas aqui e aqui a propósito do movimento liberalizador tendente à criação do mercado europeu de eletricidade (anteriormente assente em empresas públicas monopolistas verticalmente integradas), superiormente retratado no e-book “Reflexões de Direito da Energia”, recentemente publicado pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) e da autoria de Filipe Matias Santos, que, aqui, seguimos de perto.

Na verdade, com a transposição para a ordem jurídica portuguesa dos princípios da Diretiva n.º 2003/54/CE e, posteriormente, da Diretiva n.º 2009/72/CE[2], instituiu-se e aprofundou-se a separação (unbundling) jurídica dos operadores das redes de transporte e de distribuição das demais atividades do setor elétrico (nomeadamente, a produção e a comercialização), o que importou o seu desdobramento em diferentes empresas (ainda que permanecendo concentradas no mesmo grupo empresarial) e a proibição de os operadores das redes comercializarem energia (atividade que apenas é permitida aos produtores e aos comercializadores).

A atividade de compra e venda de energia elétrica passou a ser exercida em regime de livre concorrência, embora sujeita a registo, por decisão da Direção-Geral de Energia e Geologia (arts. 45.º-1, 46.º e 47.º do Decreto-Lei n.º 172/2006), possibilitando-se aos clientes finais, destinatários dos serviços de fornecimento de eletricidade, procederem à escolha de um comercializadores em regime de mercado para com ele se relacionarem contratualmente.

Por sua vez, os comercializadores, visto que não podem proceder à entrega física da energia elétrica aos utentes com quem contratam o fornecimento, gozam do direito de livre acesso às infraestruturas de transporte e de distribuição (third-party access to networks) por força de contratos de uso das redes (art. 351.º do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC) e arts. 8.º e seguintes do Regulamento de Acesso às Redes e às Interligações – RARI).

Neste seguimento, porque as redes de transporte e de distribuição subsistiram como monopólios naturais, sendo as respetivas atividades exercidas mediante a atribuição de concessões de serviço público, colocou-se a necessidade de regular os proveitos permitidos (allowed revenues) dos operadores, os quais devem proporcionar às empresas concessionárias uma remuneração bastante (mas não desproporcional) para a recuperação do investimento na instalação, manutenção e atualização das infraestruturas que têm a seu cargo e o cumprimento, de modo eficiente, das obrigações de serviço público e padrões de qualidade a que se encontram vinculados, impedindo a subsidiação cruzada entre atividades.

É, assim, nesta base, que a ERSE procede à fixação de tarifas de acesso às redes, calculadas para cada uma das atividades reguladas e respeitantes ao uso de cada uma das redes (de transporte e de distribuição), à operação logística de mudança de comercializador e à gestão global do sistema, sendo que tais tarifas, por força do funcionamento do princípio da aditividade, são juridicamente repercutidas sobre os clientes finais nas faturas do serviço de eletricidade emitidas pelo comercializador.

Ora, com a faturação da potência contratada (em euros por mês), procede-se à cobrança dos encargos em que os operadores das redes incorrem com a colocação à disposição da potência no ponto de entrega, sendo a potência contratada uma das grandezas a determinar para efeitos de faturação das tarifas de acesso às redes (aplicáveis às entregas em Baixa Tensão Normal, i.e., com a potência contratada inferior ou igual a 41,4 kVA) aos comercializadores e por estes depois repercutidas junto dos seus clientes (arts. 47.º-2, 200.º-1-b) e 2 e 201.º-1 do RRC e 41.º-1-a) do Regulamento Tarifário do Setor Elétrico). Logo, uma mudança de escalão da potência contratada para escalão superior implica um incremento do preço da potência contratada e, por conseguinte, um aumento da tarifa de acesso às redes, isto porque, em tais circunstâncias, tornam-se necessários maiores investimentos nas redes elétricas. Além da tarifa de acesso às redes, o valor do preço da potência contratada inclui, também, uma margem de comercialização, a qual varia de comercializador para comercializador

Daí que, sem violar o disposto no art. 8.º da LSPE, porquanto se verifica uma correspondência direta com um encargo suportado pela entidade prestadora, a fatura do serviço de fornecimento de energia elétrica apresentada ao cliente final reflita, para além do preço da energia efetivamente consumida, o preço da potência contratada.


[1] Criada pela Lei n.º 30/2003, de 22 de agosto, a contribuição audiovisual destina-se a financiar o serviço público de radiodifusão e de televisão. Tem o valor mensal de € 2,85, sendo liquidada pelas empresas comercializadoras de eletricidade nas faturas respeitantes ao fornecimento daquele serviço (arts. 4.º-1 e 5.º-1 e 2 da Lei n.º 30/2003).

[2] Entretanto revogada pela Diretiva (UE) 2019/944, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2021 (art. 72.º)

Há um direito a (ter) conta bancária? – A conta de serviços mínimos bancários

Doutrina

Manuel Januário da Costa Gomes, na sua obra Contratos Comerciais, levanta a questão colocada no título a propósito do Decreto-Lei n.º 27-C/2000, que criou o sistema de acesso aos serviços mínimos bancários (SMB), com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 19/2011, ou seja, num momento em que vigorava, ainda, um “regime de adesão voluntária” ao sistema pelas instituições de crédito.

Entretanto, com a terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 27-C/2000 operada pela Lei n.º 66/2015, foi imposta a obrigação de disponibilização de SMB a todas as instituições de crédito que disponibilizem ao público os serviços que integram as contas de pagamento com características básicas (basic bank accounts), assim denominadas ao nível dos instrumentos normativos de soft law e de hard law da União Europeia, de entre os quais se destaca a Recomendação da Comissão de 18 de julho de 2011 e a  Diretiva 2014/92/CE.

Neste novo contexto, reveste ainda maior acuidade a questão de saber se se revela ajustada a afirmação de um direito universal a (ter) conta bancária. E, em caso de resposta afirmativa, importa deslindar as implicações que o reconhecimento de tal posição jurídica assume na configuração tradicional da relação bancária.

Porém, antes de avançar com uma proposta de resposta às interrogações acima enunciadas, creio necessário desenvolver uma breve caracterização do regime jurídico dos SMB.

Apesar de não integrar o elenco taxativo de serviços públicos essenciais constante no art. 1.º-2 da LSPE, numa moderna sociedade europeia como a portuguesa, a prestação universal de serviços de pagamento constitui uma condição cada vez mais indispensável ao desenvolvimento de uma economia sem fronteiras internas e socialmente inclusiva e coesa, em que todos os cidadãos, independentemente da sua situação de vulnerabilidade (resultante, e.g., de uma situação financeira difícil ou de uma formação escolar rudimentar), da sua nacionalidade, do seu local de residência ou de qualquer outro dos fatores referidos no art. 21.º da CDFUE, participam plenamente na dinâmica do mercado interno e colhem os benefícios que dele advêm.

Nesta era de financeirização da economia e do cidadão superiormente retratada por Guido Comparato, a titularidade de uma conta bancária à ordem (e de um cartão de débito) constitui condição necessária ou, pelo menos, significativamente facilitadora da execução de operações de depósito, de transferência ou levantamento de fundos. Pense-se, em particular, no recebimento de retribuições laborais ou prestações sociais, no pagamento de impostos e de contribuições para a Segurança Social e no pagamento das contraprestações periódicas devidas pelo fornecimento de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas.

Por conseguinte, afigurando-se incontornável o reconhecimento do estatuto de serviços de interesse económico geral a certos serviços bancários[1], nos dias de hoje, qualquer consumidor que tenha o direito de residir num Estado-Membro em virtude do direito da União Europeia ou nacional goza da prerrogativa de solicitar, junto de uma instituição de crédito à sua escolha, a abertura de uma conta de SMB (ou a conversão de uma conta de depósito à ordem de que já seja titular numa conta de SMB), ficando a instituição adstrita, salvo se se verificar fundamento legítimo de recusa[2], ao dever de, sem demora indevida e o mais tardar 10 dias úteis após a receção do pedido, celebrar contrato de depósito à ordem e, nesse seguimento, disponibilizar os seguintes serviços: manutenção, gestão, titularidade e encerramento da conta; disponibilização de um cartão de débito para movimentação da conta através dos caixas automáticos em Portugal e nos restantes Estados-Membros da União Europeia, de homebanking e dos balcões da instituição de crédito; execução de ordens de depósito e de levantamento de numerário e ordens de pagamentos de bens e serviços, nomeadamente na modalidade de débito direto; realização de transferências intrabancárias, interbancárias (através de caixas automáticos, sem limite de número de operações), via homebanking (com o limite de 24 transferências nacionais e no interior da União Europeia, por cada ano civil) e através de aplicações de pagamento operadas por terceiros (por exemplo, MBWay, com o limite de 5 transferências mensais e de valor igual ou inferior a € 30 por operação) – arts. 1.º-2-a), 2.º-1, 3.º-2, 4.º-1, 3 e 5, 4.º-A, 4.º-B e 4.º-C-1 do Decreto-Lei n.º 27-C/2000.

A fim de assegurar o acesso a estas contas de pagamento com características básicas ao maior número possível de consumidores, de acordo com o art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 27/C-2000, pelos serviços e operações acima elencados, não podem ser cobrados, pelas instituições de crédito, comissões, despesas ou outros encargos que, anualmente, e no seu conjunto, representem montante superior ao equivalente a 1% do valor do Indexante dos Apoios Sociais (cujo valor, em 2021, é de € 438,81).

Face ao exposto, temos que o sistema de acesso aos SMB obedece, quanto ao modelo formal adotado, a um figurino de hétero-regulação, porquanto as obrigações assumidas pelas instituições de crédito e toda a restante disciplina que rege as contas bancárias básicas radicam em fonte legal[3]. E, indo mais além, parece-me indiscutível que, no âmbito do sistema de que aqui trato, se encontra configurada uma restrição à liberdade de contratar, enquanto dimensão do princípio da liberdade contratual (art. 405.º do Código Civil), pois a instituição de crédito tem a obrigação (legal) de contratar com o consumidor, desde que este revista a qualidade de “interessado” nos termos do Decreto-Lei n.º 27-C/2000 (ser pessoa singular e ter o direito de residir num Estado-Membro em virtude do direito da União Europeia ou nacional – art. 1.º-2-g)), e em relação a ele não se verifique algum dos fundamentos taxativos, legalmente determinados, de recusa, impeditivos do reconhecimento do direito a conta de SMB. Mais concretizadamente, porque o cliente, por um ato livre de vontade e preenchidos aqueles requisitos, não carece da cooperação da instituição de crédito para a conclusão do contrato de depósito à ordem, entendo que, em bom rigor, o mesmo se encontra investido num direito potestativo, a que se opõe um estado de sujeição da contraparte, que tem de suportar inelutavelmente na sua esfera a consequência jurídica cominada (no caso, a abertura de conta de SMB domiciliada na instituição de crédito escolhida pelo consumidor), sem nada poder (nem dever) fazer para o evitar.

Ora, a compreensão que acabo de assumir no sentido da afirmação de um direito universal a (ter) conta bancária não pode deixar de espoletar uma discussão, ainda que breve, sobre o mérito do entendimento dominante na literatura e jurisprudência acerca da configuração da relação bancária.

Entre nós, é comum sustentar-se que a relação bancária tem fonte contratual, radicando num “contrato bancário geral” – o contrato de abertura de conta à ordem –, que reveste a natureza de contrato-quadro, pois não só constitui o negócio jurídico nuclear que assinala o início de relação complexa e dotada de vocação de perdurabilidade, como estabelece o quadro básico do relacionamento entre cliente e instituição de crédito numa multiplicidade de contratos concomitantes e futuros, projetando-se ao nível da conta-corrente bancária e do giro bancário, os dois elementos necessários do contrato de abertura de conta[4].

Penso, contudo, que a teoria ora descrita sucintamente não se assume como a mais adequada para caracterizar a relação bancária instituída ao abrigo do sistema de acesso aos SMB. Como vimos acima, a operação de abertura de conta de SMB não é conduzida sob a égide do princípio da liberdade de celebração contratual, nem reveste de caráter intuitu personae, visto que a instituição de crédito não pode recusar-se (salvo motivo legítimo) a contratar com qualquer interessado. Como tal, parece-me que, neste caso (e, talvez até, na generalidade dos casos, fora do universo dos SMB), a relação bancária encontra melhor respaldo na teoria da relação obrigacional legal, sem dever primário de prestação, defendida por Claus-Wilhelm Canaris[5], porquanto se funda no direito objetivo, sendo anterior à celebração de qualquer contrato bancário, não apenas no que tange aos deveres gerais de proteção (em particular, os deveres de informação), mas mesmo, em larga medida, em relação ao conjunto do programa obrigacional norteador da situação jurídica que liga cliente e instituição de crédito[6].

Por outras palavras, e em síntese, não deixando, naturalmente, de reconhecer a existência de contrato entre o cliente e a instituição de crédito, creio, ainda assim, que a disciplina da relação de prestação de SMB decorre imediatamente da lei.


[1] Neste sentido, já no longínquo ano de 2001, Rodrigo Gouveia, Os serviços de interesse geral em Portugal, Coimbra Editora, 2001, pp. 123-125.

[2] A saber: à data do pedido de abertura de conta de SMB (ou de conversão de depósito à ordem em conta de SMB), o cliente é titular de outra conta de depósito à ordem, junto de instituição de crédito estabelecida em território nacional (a menos que um dos contitulares da conta de SMB seja uma pessoa singular com mais de 65 anos ou dependente de terceiros, por apresentar um grau de invalidez permanente igual ou superior a 60 %); o cliente recusar a emissão da declaração de não titularidade de outra conta de depósito à ordem prevista no n.º 2 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 27-C/2000.

[3] José Simões Patrício, Serviços Mínimos Bancários, in “Direito dos Valores Mobiliários”, volume IV, Coimbra Editora, 2003, pp. 223-225.

[4] António Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 5.ª edição, 2013, Almedina, pp. 532-533 e 552-569.

[5] Claus-Wilhelm Canaris, Bankvertragsrecht, I, 3.ª edição, Walter de Gruyter, 1988, n.º 12 e ss.

[6] Manuel Carneiro da Frada, Deveres de informação e relação bancária (com vista para a intermediação financeira), in “Revista de Direito da Responsabilidade”, Ano 3, 2021, pp. 184-196.

As chamadas telefónicas com os prefixos 760 e 761 nos concursos publicitários de programas televisivos

Doutrina

Em post anterior, dedicado a uma primeira análise crítica do recém-adotado Decreto-Lei n.º 59/2021, relevou-se positivamente o estabelecimento de um “regime autónomo e mais robusto, que visa garantir, finalmente, uma aplicação prática efetiva” da obrigação de que as linhas telefónicas disponibilizadas pelos profissionais sejam gratuitas ou correspondam a uma gama de numeração geográfica ou móvel (com os prefixos “2” ou “9”), para contacto do consumidor, no âmbito de uma relação jurídica de consumo.

Sem prejuízo, a questão da necessidade de regulação do preço das chamadas telefónicas, encarada como medida de tutela da posição dos consumidores, também se coloca com particular acuidade no que tange às chamadas por aqueles realizadas para inscrição (e eventual seleção e participação) em concursos publicitários de programas televisivos que recorrem à utilização de números de telefone com custos acrescidos, como sejam as linhas telefónicas das gamas 760 e 761 do Plano Nacional de Numeração da ANACOM, as quais identificam serviços de tarifa única em que o preço máximo por chamada é de, respetivamente, € 0,60 (mais IVA) e € 1,00 (mais IVA).

Neste domínio, como explanaremos de seguida, por força de práticas comerciais desleais (enganosas e agressivas), consumidores particularmente vulneráveis em razão da idade (igual ou superior a 65 anos) ou de situação de carência económica vêm a adotar reiteradas decisões de transação (no caso, decisões de participação em concursos publicitários mediante realização de várias chamadas telefónicas) que os levam ao depauperamento das finanças pessoais e, até, à colocação em situação (de risco) de sobre-endividamento.

A comunicação comercial a concurso publicitário difundida por um operador de televisão enquadra-se no âmbito da figura da autopromoção, prevista no art. 2.º-1-c) da Lei n.º 27/2007, de 30 de julho, na medida em que constitui a promoção de um serviço oferecido pelo próprio operador, integrado em programa de entretenimento pelo mesmo emitido, com vista à atribuição de prémios aos telespectadores, mediante a realização, por este, de chamadas telefónicas pagas, sendo que a receita das chamadas reverte, em parte, para o titular do serviço de programas televisivo.

Neste encalço, por estar em causa a divulgação de serviços próprios do operador televisivo, que atua no âmbito da sua atividade comercial (portanto, um profissional), dirigida a pessoas singulares que, embora com um interesse económico subjacente, intervêm na prática comercial do profissional, mediante o pagamento de um preço (custo fixo da chamada telefónica), com fins que não se incluem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional (isto é, consumidores), deve concluir-se que a promoção dos referidos concursos publicitários, inseridos em programas de TV, está subordinada à disciplina normativa do Decreto-Lei n.º 57/2008[1].

Isto posto, conquanto se reconheça que os concursos em causa geram uma receita significativa para a salvaguarda do equilíbrio financeiro das estações televisivas que as promovem, não pode deixar-se de acompanhar o entendimento do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, organicamente integrado no Instituto do Turismo de Portugal, I.P., quando preconiza que, atendendo à regularidade dos concursos, aos montantes neles envolvidos e à “forte promoção e [a]o insistente e persistente apelo à participação dos telespectadores”, poder-se-á “justificar um eventual recurso à possibilidade conferida pelo n.º 3 do artigo 159.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, com a adoção de medidas convenientes à proteção dos consumidores e de medidas restritivas da exploração de concursos com as características mencionadas por parte dos canais de televisão”[2].

Na verdade, como resulta patente a partir do simples visionamento de qualquer dos programas de entretenimento de day-time dos operadores televisivos generalistas (em dias úteis e, em particular, ao fim-de-semana) e foi declarado, de forma assertiva e categórica, nas Deliberações 32/2016 (OUT-TV), 33/2016 (OUT-TV) e 34/2016 (OUT-TV) da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, as promoções de concursos publicitários no decurso de tais programas consubstanciam práticas comerciais desleais porque: a) por um lado, são suscetíveis de induzirem em erro o telespectador sobre as características do concurso, levando-o a adotar uma decisão de transação (no caso, decisão de participar no concurso e os termos da sua participação) que, de outro modo, não tomaria, caso conhecesse, cabalmente, as reais características daquele; b) e, por outro lado, exercem uma influência indevida sobre o telespectador – acentuada pelo facto de o público-alvo destes programas ser composto, maioritariamente, por pessoas com idade ou superior a 65 anos ou que enfrentam algum infortúnio na sua vida pessoal e/ou profissional ou dos membros do seu agregado familiar –, sendo aptas a limitar de forma significativa a capacidade de decisão do mesmo, conduzindo-o a tomar decisão de transação que, não fosse a pressão psicológica exercida pelos apelos verbais dos apresentadores e pelas mensagens gráficas persistentes, não adotariam.

Quanto à asserção produzida em a), que reúne os pressupostos de que depende a prática de uma ação enganosa, nos termos do disposto nos arts. 6.º-b) e 7.º-1-b) do Decreto-Lei n.º 57/2008, ainda que, após a celebração do “Acordo de Autorregulação em Matéria de Concursos com Participação Telefónica” entre os operadores RTP, SIC e TVI se tenha começado a verificar que os apelos verbais dos apresentadores e as mensagens gráficas apresentadas no decurso dos programas contemplam referência à real natureza do prémio (cartão de débito VISA Electron pré-carregado e não dinheiro), constata-se que, não raras vezes, a promoção não é clara relativamente às pessoas que se podem habilitar ao prémio (apenas os maiores de 18 anos) nem às concretas utilizações que lhe podem ser conferidas (o cartão apenas pode ser utilizado para efetuar pagamentos de compras através de terminais da rede VISA, não sendo possível a sua transferência para outras contas, nem o seu levantamento em numerário).

Ademais, é criada a convicção no telespectador de que pode efetuar um número ilimitado de chamadas para se habilitar a ganhar o prémio em jogo (recorrendo ao adágio orelhudo “quantas mais vezes ligar, mais hipótese tem de ganhar”), o que não corresponde à verdade, pois cada participante apenas pode efetuar até 10 ou 6 chamadas diárias por concurso e por número de telefone de origem (consoante o número de destino pertença à gama de numeração 760 ou 761, limitação automática que, contudo (ressalvam os regulamentos destes concursos[3]), por razões técnicas, o sistema informático pode não lograr operar, caso em que a chamada seguinte será considerada uma inscrição válida e será cobrada a tarifa única, sem que, pasme-se, possa ser exigida dos promotores qualquer indemnização ou compensação). E, bem assim, é prometido o imediato envio do cartão de débito para a casa do vencedor do concurso, o que também, de facto, pode não suceder, visto que, de acordo com os regulamentos destes concursos, a entrega do prémio poderá ter lugar até 90 dias a contar da data da realização do sorteio que apura o candidato contemplado.

Acresce, ainda, o facto de ser omitida qualquer referência à existência de um intervalo temporal contado desde a data de emissão do cartão para a utilização do saldo nele creditado, sob pena de caducidade do direito à utilização do saldo remanescente (se o houver).

E não se diga que o conhecimento de algumas das características dos concursos acima destacadas resulta assegurada pela mera remissão para o regulamento aplicável. Não obstante se terem operado progressos louváveis, ao nível da informação gráfica exibida em cada período de apelo (feito pelos apresentadores), após a conclusão do “Acordo de Autorregulação” acima referido[4], entendo que subsiste uma desproporção manifesta entre o destaque conferido ao número de telefone a ligar e ao valor do prémio em jogo e as demais características relevantes do concurso, a qual não é, de todo em todo, mitigada pela disponibilização do regulamento do concurso em sítio da internet ou em página do teletexto, plataformas cujo acesso e consulta requerem capacidades que os targets dominantes dos programas de entretenimento de day-time, em muitos casos, não dispõem.

Uma derradeira consideração acerca da asserção produzida em a) para notar que, ao contrário do que estabelece o “Acordo de Autorregulação”, os operadores de televisão recorrem a suportes gráficos de comunicação com função primordialmente apelativa à participação nos concursos, como é o caso da colocação de relógio em countdown no canto superior direito do ecrã, mormente na parte final dos programas.

Já no que respeita à afirmação sob alínea b) acima, que congrega os requisitos necessários à configuração de uma prática comercial agressiva, nos termos dos arts. 6.º-b) e 11.º-1 e 2-a) do Decreto-Lei n.º 57/2008, reveste meridiana clareza que, em todos os programas de entretenimento de day-time se pratica um apelo insistente, com recurso a uma linguagem persuasiva (empregue por apresentadores que gozam de elevada notoriedade e, mesmo, credibilidade junto dos telespectadores), à inscrição nos concursos publicitários, sugerindo-se facilidade na realização da chamada (“é o preço de um café”) e na obtenção do prémio, incitando-se à realização de mais do que uma chamada e alimentando-se a expectativa de o consumidor conseguir, por aquela via, fazer face a todos os seus compromissos financeiros e realizar os seus sonhos de vida. Seja em espaços exclusivamente dedicados ao efeito, seja no decurso de espaços de entrevistas a convidados ou de momentos musicais, os apelos verbais surgem acompanhados por elementos gráficos, que estimulam, igualmente, à realização de chamadas, os quais permanecem no ecrã desde alguns segundos até vários minutos.

Neste particular, creio que a norma autorreguladora gizada pelos operadores de televisão não satisfaz, minimamente, as exigências de proteção dos consumidores vulneráveis, ao prever que “apenas serão permitidos, no máximo, 5 (cinco) períodos de apelo pelos apresentadores, com a duração total máxima de 12 minutos, por hora de programa” (art. 10.º). A quantificação do tempo de duração máxima dos períodos de apelo revela-se manifestamente excessiva, tanto mais porque é utilizada, até ao limite estipulado, no final dos programas de entretenimento, coincidentes com períodos de confeção e toma de refeições (almoço ou jantar) ou de regresso a casa de trabalhadores (após jornada de trabalho) e imediatamente anteriores a espaços de informação, logo, previsivelmente, de maior audiência. No limite, como alerta a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, com a promoção persistente dos concursos nos programas de day-time, corre-se o risco de se desvirtuar a “linha editorial subjacente a um programa de entretenimento, comprometendo-se, deste modo, a identidade e integridade do mesmo”, a ponto de se inverter “toda a lógica do programa (…) anunciado, (…) transformando-o num conteúdo essencialmente promocional, onde o entretenimento e as variedades tendencialmente se convertem em mero pretexto para captar a atenção do espectador para a verdadeira mensagem que se quer passar: a da promoção do concurso e da persuasão à realização do maior número de chamadas telefónicas”, em contravenção com o disposto no art. 9.º-1-a) da Lei n.º 27/2007.

Por todo o exposto, merece o nosso aplauso a decisão de criação de um Grupo de Trabalho para a Revisão do Regime dos Concursos e Passatempos, vertida no Despacho n.º 1620/2021 do Secretário de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor – cujas conclusões ainda não são conhecidas (embora já devessem ter sido apresentadas até ao dia 15 de abril de 2021) –, consequente à Recomendação n.º 7/B/2020 da Senhora Provedora de Justiça, na qual, a par da necessidade de reforço da proteção dos consumidores mais vulneráveis, também se suscitam sérias dúvidas quanto à conformidade dos regulamentos dos concursos com o Decreto-Lei n.º 422/89, mormente os seus arts. 159.º e ss., por estar em causa uma modalidade afim dos jogos de fortuna ou azar. Muito sucintamente, conclui-se naquela Recomendação que o uso de números de tarifa especial majorada, como sejam os números com prefixo 760 e 761, viola o disposto no art. 161.º-2 do Decreto-Lei n.º 422/89, que proíbe dispêndio para o jogador que não seja o do custo normal de serviço público de telecomunicações (cfr. arts. 3.º-jj) e 86.º e ss. da Lei n.º 5/2004), assim como se sustenta que a utilização de cartões de débito como prémio colide com o preceito do art. 159.º-1-in fine, isto porque, como já referido pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, “um cartão de débito não constitui uma coisa «com valor económico», mas um verdadeiro prémio em dinheiro, uma vez que o cartão de débito constitui uma forma de pagamento eletrónico que permite a dedução do valor de uma compra diretamente no cartão do titular e por representar um título indicativo de uma quantia monetária suscetível de ser movimentada a qualquer momento”.


[1] Neste sentido, o Considerando (82) da Diretiva 2010/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de março de 2010, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros respeitantes à oferta de serviços de comunicação social audiovisual (Diretiva «Serviços de Comunicação Social Audiovisual»), que reza nos seguintes termos: “Para além das práticas reguladas pela presente diretiva, as práticas comerciais desleais, como as práticas enganosas e agressivas, que se verifiquem nos serviços de comunicação social audiovisual são reguladas pela Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno”, que foi transposta para a ordem jurídica nacional por via do Decreto-Lei n.º 57/2008.

[2] Pronúncia reproduzida na Deliberação 99/2015 (OUT-TV) do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (Concursos publicitários de participação telefónica nos serviços de programas televisivos generalistas RTP1, SIC e TVI)

[3] Ver, a título exemplificativo, os regulamentos dos concursos “Casa Feliz 2021 – 2.ª Edição” e “Camião da Sorte 2021”, promovidos pela SIC, e “Dois às 10 2021 – 2.ª Série” e “Somos Portugal – Junho/Julho 2021”, promovidos pela TVI.

[4] Previstos no art. 11.º do “Acordo de Autorregulação”, onde se prevê: a emissão de texto em oráculo – “O concurso publicitário x/x foi autorizado pela SGMAI. Prémio em [menção do prémio em espécie], não convertível em dinheiro. Antes de participar, consulte o regulamento em [sítio da internet] e no teletexto. Cada chamada tem o custo de € x + IVA. Idade mínima de participação: 18 anos. Limite máximo diário de x chamadas neste concurso, por número de telefone de origem. Participe no concurso de forma informada e responsável” –, o qual deve obrigatoriamente obedecer a um tamanho e um tipo de letra que torne possível a sua leitura pela generalidade dos espectadores, devendo a altura dos caracteres corresponder, no mínimo, a um terço da altura dos caracteres utilizados no oráculo para a divulgação do número de telefone usado para inscrição nos concursos; caso o oráculo seja divulgado em movimento (vulgo, ticker), deve o mesmo deslocar-se a uma velocidade que permita a sua leitura pela generalidade dos espectadores; deve ser divulgado, pelo menos 4 vezes por hora de programa, o sítio da internet e/ou a página de teletexto onde se encontra disponível o regulamento relativo ao concurso (observando-se, para tanto, as exigências formais de tamanho e tipo de letra e velocidade do oráculo anteriormente referidas); sempre que seja utilizado um grafismo para comunicação dos concursos, deve ser mencionada regularmente informação sobre a existência de regulamento aplicável ao concurso e a forma de acesso ao mesmo, bem como informação sobre valor e natureza do prémio (“em cartão”), sendo aplicáveis a tais grafismos os já referidos requisitos quanto ao tamanho e tipo de letra.