O Caso Tiketa e o alargamento do conceito de profissional ao intermediário

Jurisprudência

No dia 24 de fevereiro de 2022, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu um acórdão, no âmbito do Caso Tiketa (Processo C-536/20), que se debruça sobre duas questões muito relevantes em matéria de direito europeu do consumo. Em primeiro lugar, pergunta-se se o conceito de profissional da Diretiva 2011/83/UE abrange a pessoa que atua como intermediária de um profissional. Em segundo lugar, está em causa o valor jurídico de uma remissão para as condições gerais do serviço constantes de um site no caso de o consumidor ter declarado a sua aprovação. Por um lado, importa saber se essa aprovação implica o cumprimento do dever de informação pré-contratual. Por outro lado, é necessário verificar se está cumprida a obrigação de confirmação através de um suporte duradouro.

A Tiketa é uma empresa que exerce, na Lituânia, uma atividade de distribuição de bilhetes para eventos (14)[1]. No dia 7 de dezembro de 2017, o consumidor adquiriu um bilhete para um evento cultural, organizado pela Baltic Music, a realizar no dia 20 de janeiro de 2018. Antes da conclusão do contrato, constava no site da Tiketa que esse evento era organizado pela Baltic Music. Também se podia ler, em letras vermelhas, a seguinte informação: o “organizador do evento assume total responsabilidade pelo evento, pela sua qualidade e conteúdo, bem como por quaisquer informações relacionadas. A Tiketa é o distribuidor dos bilhetes e atua na qualidade de agente comercial”. Das “condições gerais da prestação de serviços”, disponíveis no site da Tiketa, constavam “informações mais precisas sobre o prestador de serviços em causa e o reembolso dos bilhetes” (15). O bilhete reproduzia apenas uma parte dessas condições gerais, contendo, “em especial, a menção de que os “bilhetes não são trocados nem reembolsados. Em caso de cancelamento ou de adiamento do evento, o organizador [deste] responde integralmente pelo reembolso do preço dos bilhetes”. Do bilhete constava igualmente “o nome, o endereço e o número de telefone do organizador do evento em causa e era indicado que este último era totalmente responsável «pelo evento, pela sua qualidade e conteúdo, bem como pelas informações relacionadas», na medida em que a Tiketa atuava apenas como distribuidor de bilhetes e «agente comercial»” (16).

No dia marcado para o evento, o consumidor ficou a saber, através de cartaz afixado no local, que o mesmo não se realizaria (17). Dois dias depois, a Tiketa informou o consumidor de que poderia obter, em linha, o reembolso do valor pago (18). No dia seguinte, o consumidor veio exigir à Tiketa o reembolso do valor pago e uma indemnização pelas “despesas de viagem” e pelos “danos morais sofridos devido ao cancelamento do evento em causa”, tendo esta remetido a questão para a Baltic Music, que nunca respondeu (19).

Em julho do mesmo ano, o consumidor propôs uma ação contra as duas empresas, pedindo a sua condenação solidária (20). O tribunal de primeira instância decidiu, menos de três meses depois (!), julgando “o pedido parcialmente procedente, condenando a Tiketa a pagar ao interessado as quantias pedidas a título de reparação dos seus danos materiais e uma parte das pedidas a título de reparação do seu dano moral, acrescendo juros à taxa anual de 5% a contar da propositura da ação até à execução integral da sua sentença” (21). O tribunal de segunda instância manteve a decisão, o que motivou o recurso para o Supremo Tribunal, que suspendeu a instância, submetendo várias questões prejudiciais ao TJUE, já resumidas no primeiro parágrafo do presente texto.

A primeira questão consiste em saber se o conceito de profissional abrange a pessoa que atua como intermediária.

O art. 2.º-2 define profissional como “qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que, nos contratos abrangidos pela presente diretiva, atue, incluindo através de outra pessoa que atue em seu nome ou por sua conta, no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.

A versão em lituano é diferente da versão em português (25 e 26): “qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que atue no âmbito de um contrato abrangido pela presente diretiva para fins ligados à sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional, incluindo qualquer outra pessoa que atue em nome ou por conta do comerciante”.

Segundo o TJUE (27), impõe-se uma interpretação das diretivas em caso de disparidades linguísticas que tenha em conta a sua economia geral, o que remete para o elemento sistemático de interpretação, e a sua finalidade (elemento teleológico). Conclui o TJUE, à luz destas orientações, que o intermediário é profissional, sendo irrelevante se o intermediário informou que era intermediário para ser qualificado como profissional nos termos do diploma (34). Constituem argumentos do TJUE que (i) o art. 6.º-1-c) pressupõe que é profissional o intermediário, uma vez que, além dos seus dados, devem ser prestados os dados “do profissional por conta de quem atua” (28), que (ii) se impõe uma interpretação homogénea, resultando do acórdão proferido no Caso Kamenova (32, 33, 36) que profissional é qualquer pessoa que atue com fins profissionais ou em nome ou por conta de um profissional (29), e que (iii) o art. 1.º convida a uma interpretação ampla do diploma (30).

Segundo o TJUE, o Caso Wathelet, que qualifica um intermediário como vendedor, não releva neste contexto, uma vez que a Diretiva 2011/83/UE não determina a identidade das partes nem a repartição das responsabilidades (33).

O TJUE conclui, portanto, que quer o intermediário quer o profissional em nome de quem este atua podem ser qualificados como profissionais para efeitos do cumprimento das normas do diploma europeu.

A segunda questão, apesar de não ser colocada nestes precisos termos pelo TJUE, consiste em concluir sobre o valor jurídico de uma remissão para as condições gerais do serviço constantes de um site no caso de o consumidor ter declarado a sua aprovação.

O TJUE começa (41) por distinguir as obrigações materiais de informação (art. 6.º) das obrigações formais (art. 8.º).

Antes da celebração do contrato, o profissional apenas deve fornecer as informações exigidas pelo art. 6.º-1 “de uma forma clara e compreensível” (45), só após a celebração do contrato se impondo ao profissional confirmar através de um suporte duradouro.

Logo, em abstrato, é suficiente que o consumidor selecione, no site, a casa prevista para o efeito para se considerar que as informações são levadas ao conhecimento (46). No entanto, salienta-se que cabe ao tribunal nacional avaliar se as informações foram fornecidas de forma clara e compreensível (47).

Na prática, tenho algumas dúvidas de que uma remissão para um site seja mais do que uma ficção de conhecimento (e de aprovação), claramente insuficiente para que se possa considerar cumprido o dever de informação de forma clara e compreensível.

Esse procedimento de informação (pré-contratual) não substitui a (obrigação contratual de) confirmação em suporte duradouro (48), uma vez que a informação constante de um site não é fornecida através de um suporte duradouro (51).

Independentemente do incumprimento da obrigação de confirmação em suporte duradouro, as informações prestadas são parte do contrato, nos termos do art. 6.º-5 (52). Em suma, o TJUE conclui que a Tiketa deve ser qualificada como profissional para efeitos de aplicação da Diretiva 2011/3/UE. Quanto ao cumprimento, pela Tiketa, do dever de informação pré-contratual de informação, a resposta cabe ao tribunal nacional, que deve avaliar se o mesmo foi cumprido através de uma forma clara e compreensível. Já quanto ao cumprimento da obrigação de confirmação através de um suporte duradouro, o TJUE conclui que não basta que a informação tenha estado disponível no site, com aprovação pelo consumidor, em momento anterior à celebração do contrato.


[1] Os contratos celebrados através da Tiketa não são, naturalmente, contratos de compra e venda de bilhete, uma vez que o bilhete não é o objeto principal do contrato. Se se tratar de espetáculo artístico, teremos um contrato para a assistência a espetáculo desportivo, contrato misto em que predomina o elemento prestação de serviço. Note-se que os números indicados entre parêntesis correspondem aos considerandos do Acórdão em que a questão em causa é abordada.

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