Em busca de um conceito de consumidor vulnerável

Legislação

O Programa do XXIII Governo Constitucional, apresentado e debatido no Parlamento nos dias 7  e 8 de abril de 2022, prevê a definição do Estatuto do Consumidor Vulnerável. A medida, pouco concretizada para já, assenta na fixação de um conjunto de critérios e direitos correspondentes à condição de consumidor vulnerável, o que parece apontar para aprovação de um instrumento legislativo de caráter transversal.

Entre nós, encontramos referência expressa ao consumidor vulnerável no art. 6.º-a) do Decreto-Lei n.º 57/2008, que transpôs para a nossa ordem jurídica a Diretiva n.º 2005/29/CE, relativa às práticas comerciais desleais (PCD).

Apesar de não avançar com uma definição em sentido próprio, o regime das PCD estabelece, com base numa delimitação subjetiva, dois níveis de proteção: um nível genérico, visando proteger todos tipos de consumidores relativamente a práticas comerciais desleais, e uma tutela reforçada, fundamentada na especial fragilidade dos consumidores que integram uma categoria específica, em função de três critérios não taxativos: doença mental ou física, idade ou credulidade.

Porém, enquanto na Diretiva o conceito emerge no art. 5.º-3, funcionando como um critério para a aplicação da cláusula geral do regime, na versão portuguesa, a matéria surge num patamar autónomo, sob a epígrafe “práticas comerciais desleais em especial, no art. 6.º-a), opção sistemática no mínimo discutível.

Na legislação nacional, assinala-se, ainda, uma diferenciação entre consumidores, com base em critérios económicos, nos diplomas que criaram as tarifas sociais de fornecimento de energia elétrica, de gás natural, de água e de serviços de acesso à Internet em banda larga, pese embora as expressões utilizadas sejam distintas[1].

Na mesma senda, também no art. 14.º do Código da Publicidade é possível encontrar regras que disciplinam a publicidade especialmente dirigida a menores, orientadas para proibir práticas que explorem a “vulnerabilidade psicológica”, enquanto caraterística comummente associada a este conjunto de consumidores.

Nos últimos dois anos, fruto da crise sanitária provocada pela pandemia de COVID-19, que colocou em evidência a situação de especial fragilidade de certos grupos de consumidores, a matéria da proteção dos consumidores vulneráveis ganhou novo fôlego.

Com isto em mente, no ponto 4 da Nova Agenda do Consumidor para 2020-2025, apresentada em novembro de 2020, a Comissão Europeia alertou para a necessidade de “dar resposta às necessidades específicas dos consumidores”, considerando que “certos grupos de consumidores podem, em determinadas situações, ser particularmente vulneráveis e necessitar de salvaguardas específicas”, numa abordagem muito voltada para os casos de endividamento.

Recentemente, no passado dia 2 de março, entrou em vigor em Espanha a Ley 4/2022, de 25 de febrero, relativa à proteção dos consumidores e utilizadores em situações de vulnerabilidade social e económica.

Em consonância com o regime especial, criado no contexto pandémico pelo Real Decreto-ley 1/2021, de 19 de enero, este diploma introduziu o art. 3.º- 2 na Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuarios, que passou a incluir a definição de consumidor vulnerável, integrando as pessoas singulares que, individual ou coletivamente, devido às suas características, necessidades ou circunstâncias pessoais, económicas, educacionais ou sociais, se encontram numa situação especial de subordinação, indefensabilidade ou falta de proteção que as impede de exercer os seus direitos como consumidores em condições de igualdade.

Assim, no art. 8.º-1 surgem elencados os direitos básicos dos consumidores e no art. 8.º-2 encontramos agora uma referência expressa a esta categoria, determinando que os direitos dos consumidores vulneráveis devem beneficiar de uma atenção especial, que será coberta pelos regulamentos e pelas regulamentações sectoriais aplicáveis em cada caso.

Já no Brasil, ordenamento no qual vigora a figura da hipervulnerabilidade por a vulnerabilidade ser encarada como uma caraterística ínsita no próprio conceito de consumidor, o art. 39.º, IV, do Código de Defesa do Consumidor proíbe o fornecedor de produtos ou serviços de “(…) prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços”.

Como pode constatar-se, tanto o legislador brasileiro como o espanhol optaram por reconhecer a existência de grupos que carecem de especial proteção em função de critérios qualificadores ricos em conceitos indeterminados, cujo preenchimento caberá ao intérprete-aplicador.

Conforme ficou patente, o grupo dos consumidores vulneráveis está longe de ser homogéneo. Com efeito, a vulnerabilidade assume contornos diversos e pode manifestar-se em diversos planos − socioeconómico, técnico, jurídico, informacional, psicológico, digital – e até de forma cumulativa.

Além disso, não se trata de uma realidade estanque: um consumidor pode encontrar-se numa situação de particular vulnerabilidade exclusivamente numa determinada conjuntura em função de circunstâncias que podem alterar-se no tempo e no espaço.

A natureza dinâmica do conceito reflete-se, também, nos novos desafios que o consumidor enfrenta em virtude da evolução tecnológica, que podem, por exemplo, realçar fragilidades específicas do ambiente digital[2].  

Neste quadro, cremos que a vulnerabilidade deve ser vista não como uma condição, mas como um estádio que pode ou não ser temporário, e, ainda, como um espectro, contemplando diversos graus de incidência[3].

De resto, cremos que aqui poderá residir uma das maiores dificuldades a enfrentar pelo nosso legislador no que toca à densificação do conceito: a vulnerabilidade é um fenómeno multidimensional e mutável, o que pode conviver mal com uma lógica de cristalização normativa. Aguardamos, por isso, com natural expectativa os desenvolvimentos que se avizinham neste domínio.


[1] No art. 5.º do Decreto-Lei n.º 138-A/2010, que fixa a tarifa social de fornecimento de energia elétrica e no art. 2.º do Decreto-Lei n.º 101/2011, que cria a tarifa social de fornecimento de gás natural, o legislador refere-se a “clientes finais economicamente vulneráveis”, no art. 2.º do Decreto-Lei n.º 147/2017, que consagra o regime da tarifa social relativa à prestação dos serviços de águas, recorre-se ao conceito de “pessoas singulares que se encontrem em situação de carência económica” e no art. 4.º do Decreto-Lei n.º 66/2021, que estabelece a tarifa social de internet, determina-se que a medida se destina a “consumidores com baixos rendimentos ou com necessidades sociais especiais”.

[2] Nas Orientações sobre a interpretação e a aplicação da Diretiva 2005/29/CE, a Comissão Europeia refere que “as formas pluridimensionais de vulnerabilidade são particularmente acentuadas no ambiente digital, que se caracteriza cada vez mais pela recolha de dados sobre características sociodemográficas, mas também por características pessoais ou psicológicas, tais como interesses, preferências, perfil psicológico e humor”.

[3] Neste sentido, relatório final do estudo Consumer vulnerability across key markets in the European Union, que examinou a incidência da vulnerabilidade na UE a 28 e na Islândia e Noruega, divulgado pela Comissão Europeia, em 2016.

Os novos prazos máximos dos contratos de crédito à habitação

Legislação

No passado dia 31 de janeiro, o Banco de Portugal (BdP) divulgou, através de comunicado, a emissão de uma recomendação macroprudencial relativa ao estabelecimento de novos limites à maturidade máxima das novas operações de crédito à habitação em função da idade dos mutuários.

Seguindo esta orientação, a partir de 1 de abril de 2022, a maturidade máxima dos créditos à habitação deve ser de 40 anos, para mutuários com idade inferior ou igual a 30 anos. Já para quem tem entre 30 e 35 anos, o prazo máximo recomendado desce para 37 anos. Para os mutuários com mais de 35 anos, o prazo máximo de contrato deve ser de 35 anos.

A este propósito, note-se que, já em julho de 2018, o supervisor tinha adotado uma recomendação dirigida à atividade de concessão de novos créditos a consumidores destinados à habitação, com garantia hipotecária ou equivalente, e ao consumo, através da qual introduziu limites a alguns dos critérios usados na aferição da solvabilidade dos mutuários. Nessa ocasião, determinou, ainda, que os novos contratos de crédito à habitação deveriam convergir do prazo máximo de 40 anos para uma convergência média de 30 anos.

No entanto, desde então, a prática na concessão de crédito não tem sido consentânea com esse desiderato. Segundo o Relatório de Acompanhamento da Recomendação Macroprudencial sobre Novos Créditos a Consumidores do BdP, publicado em março de 2021, verificou-se que, em dezembro de 2020, mais de 69% das novas operações de crédito à habitação apresentavam uma maturidade entre 30 e 40 anos. Relativamente à evolução da maturidade média das novas operações do crédito à habitação, apesar da diminuição de 33,5 anos para 32,6 anos entre julho de 2018 e dezembro de 2019, observou-se uma tendência de aumento em 2020. Assim, no final de 2020, a maturidade média fixou-se em 33,2 anos, um valor superior ao do limiar de 30 anos previsto para o final de 2022.

Ademais, entre 2018 e 2019, enquanto na generalidade dos países da União Europeia, a maturidade média das novas operações de crédito à habitação se situava entre 20 e 25 anos, entre nós, a maturidade média era superior a 30 anos.

Nessa sede, o próprio supervisor reconheceu que “a manutenção da maturidade média das novas operações de crédito à habitação em níveis elevados implica um risco acrescido para as instituições por implicar que as exposições de crédito ficarão vulneráveis a flutuações do ciclo económico e financeiro durante um período mais longo”. Adicionalmente, “maturidades mais elevadas diminuem a flexibilidade de reestruturação de créditos para mutuários em dificuldades financeiras”.

Em acréscimo, no Relatório de Estabilidade Financeira, publicado em dezembro de 2018, o BdP dava conta de que, na época, cerca de 62% do stock de crédito à habitação estava associado a mutuários cuja idade seria superior a 65 anos no momento do fim do contrato.

O retrato atual, é, por isso, preocupante: os portugueses contraem crédito à habitação relativamente tarde e preferem prazos extensos. O resultado no futuro? É fácil de antecipar: devedores, possivelmente, já retirados da sua vida ativa, mas ainda a braços com prestações mensais relativas ao contrato de crédito à habitação.

Neste cenário, já em final de 2018, o Governador do BdP de então, Carlos Costa, destacava que “a baixa taxa de poupança dos particulares constitui uma vulnerabilidade especialmente relevante em Portugal em face do envelhecimento da população e de um sistema público de Segurança Social que tem associado uma expectável redução significativa do rendimento desde o momento da reforma”. Esse risco, referia, aumenta “num contexto em que as famílias ainda apresentam um endividamento elevado e, sobretudo, com maturidades longas que ultrapassam a vida ativa dos mutuários”.

Assim, a recomendação do BdP, recentemente divulgada, emerge como uma tentativa de inversão deste ciclo, consolidando a posição já assumida em 2018. A lógica subjacente é a de encurtar o tempo máximo do empréstimo, em face da idade dos mutuários, de molde a procurar evitar que estes fiquem “presos” a compromissos creditícios até idade avançada, numa altura em que, expectavelmente, terão menos rendimentos para fazer face a essas despesas, em função da evolução conhecida do valor das pensões de reforma.

De resto, esta questão pode ter implicações práticas, desde logo, no papel que a habitação própria assume no quadro do complemento dos rendimentos na fase da reforma. Com efeito, para os proprietários livres de encargos, a habitação satisfaz as necessidades de alojamento a baixo custo. No entanto, ela pode ainda ser encarada como um ativo de salvaguarda, dado que, através de uma possível venda e da mudança para uma casa de menores dimensões, em face das novas necessidades familiares, é possível obter liquidez para complementar o valor da reforma, o que para aqueles que ainda mantêm obrigações associados à compra da habitação não se verifica[1].

Naturalmente, a medida macroprudencial não é vinculativa, mas o BdP alerta que continuará a monitorizar o cumprimento da recomendação e poderá adotar medidas adicionais para atingir o objetivo de convergência da maturidade média dos novos contratos de crédito à habitação para 30 anos, até ao final de 2022.

No imediato, para os consumidores, esta solução, de cariz essencialmente preventivo, encerra uma mensagem clara: um prazo menor para pagar um crédito significa prestações mensais mais elevadas. Esta preocupação acrescida, associada a uma possível subida das taxas de juro, em face de uma previsível escalada da inflação, podem adiar os planos de quem pensava comprar casa no futuro próximo, contribuindo para contrariar a tendência de crescimento que se vinha assinalando nas novas operações de crédito à habitação.


[1] Neste sentido, Romana Xerez, Elvira Pereira e Francielli Dalprá Cardoso, Habitação Própria em Portugal numa Perspetiva Intergeracional, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2019, página 39.

Publicidade a jogos e apostas − Rien ne va plus, les jeux sont faits

Legislação

De acordo com o relatório divulgado pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos (SRIJ), entre o primeiro trimestre de 2020 e o de 2021, verificaram-se 329,4 mil novos registos em jogos online, o que representa um aumento de 109%, sendo que 63,6% destes novos registos correspondem a jogadores com idade inferior a 35 anos.

Se o jogo online atrai, sobretudo, os mais jovens e qualificados, em matéria de jogos sociais, a preferência dos portugueses com habilitações e rendimentos mais baixos recai sobre outro jogo aparentemente inócuo − a raspadinha[1].

De resto, o estudo “Scratching the surface of a neglected threat: huge growth of Instant Lottery in Portugal”[2], lançado em 2020, revela que em Portugal se gastam mais de quatro milhões de euros por dia neste jogo, o que corresponde a um gasto médio por pessoa de 160 euros por ano, representando mais do dobro da média europeia.

Os autores do estudo em referência defendem que a raspadinha apresenta um conjunto de características que favorecem o estabelecimento de comportamento de jogo problemático ou patológico, como o preço baixo, a elevada acessibilidade e a rápida sensação de gratificação, praticamente instantânea. De resto, consideram que a publicidade, ao veicular a ideia de que neste jogo se pode ganhar muito com pouco, e a iliteracia sobre os riscos associados podem contribuir para potenciar o fenómeno.

Os dados são, por isso, preocupantes. O aumento generalizado do consumo de jogos, tendência acentuada durante a pandemia, fez disparar os riscos de prevalência de comportamentos aditivos. Neste contexto, a publicidade de jogos e apostas constitui apenas uma das frentes através das quais é possível atacar o problema, ainda que, na nossa perspetiva, deva ser acompanhada de outras medidas.

Em Espanha, no ano passado, foi publicado o Real Decreto 958/2020, de 3 de noviembre, de comunicaciones comerciales de las actividades de juego que fixa as condições para a publicidade, patrocínio, promoção ou qualquer outra forma de comunicação comercial por parte das entidades titulares de licenças para a realização de atividades de jogo incluídas no âmbito de aplicação da Ley 13/2011, de 27 de mayo, de regulación del juego, consagrando restrições bastante severas.

Com este regime, o horário permitido para divulgar anúncios de jogos na televisão, rádio e plataformas de vídeo passou a ser entre a 1h e as 5h da manhã.

De acordo com o diploma adotado na vizinha Espanha, no que concerne à publicidade nas redes sociais, os anunciantes devem segmentar o público-alvo das comunicações, de modo a que só possam ser enviadas a (i) pessoas que sigam as contas ou canais oficiais dos operadores de jogo em tais redes sociais, (ii) pessoas que tenham manifestado interesse ativo em atividades de jogo, desde que essas pessoas possam remover as preferências através de mecanismos permitidos pela rede social, e (iii) pessoas que se tenham registado num operador e façam parte da base de clientes existente.

Outras das medidas consagradas no regime que merece destaque consiste na proibição de atividades promocionais destinadas a atrair novos jogadores. Assim, as comunicações comerciais só podem ser dirigidas a clientes previamente registados nos sistemas dos operadores de jogo, isto é, que tenham uma conta aberta no operador de jogo relevante durante, pelo menos, 30 dias.

Já entre nós, a matéria da publicidade de jogos e apostas encontra-se regulada pelo art. 21.º do Código da Publicidade (CP), cuja redação é fruto da alteração operada pelo art. 3.º do Decreto-Lei n.º 66/2015, de 24 de abril, que aprova o Regime Jurídico dos Jogos e Apostas Online.

Ora, o art. 21.º-1 do CP determina que a publicidade de jogos e apostas deve ser efetuada de forma socialmente responsável, respeitando, nomeadamente, a proteção dos menores, bem como de outros grupos vulneráveis e de risco, privilegiando o aspeto lúdico da atividade dos jogos e apostas e não menosprezando os não jogadores, não apelando a aspetos que se prendam com a obtenção fácil de um ganho, não sugerindo sucesso, êxito social ou especiais aptidões por efeito do jogo, nem encorajando práticas excessivas de jogo ou aposta.

Para além desta norma genérica, o regime do art. 21.ºdo CP contempla regras vocacionadas essencialmente para a proteção dos menores, não estabelecendo, contudo, restrições quanto ao horário de emissão da publicidade a jogos e apostas.

Neste quadro, ainda em 2020, o Partido Comunista Português (PCP) apresentou o Projeto de Lei n.º 343/XIV/1.ª, com vista à introdução de restrições à publicidade nos jogos e apostas. Em concreto, propõe-se uma alteração ao art. 21.º do CP, proibindo a publicidade a jogos e apostas, em sítios e páginas na internet da responsabilidade de empresas e entidades com sede em Portugal, na televisão e na rádio e na imprensa escrita, entre as 7 horas e as 22 horas e 30 minutos.

Recentemente, já em 2021, foram apresentadas mais três iniciativas legislativas neste domínio.

Por via do Projeto de Lei n.º 919/XIV/2.ª, de 29 de julho de 2021, o Bloco de Esquerda (BE) também procura alterar o art. 21.º do CP, no sentido de proibir tout court a publicidade a lotarias instantâneas (raspadinhas) e, bem assim, proibir a publicidade a jogos e apostas, entre as 7 horas e as 22 horas e 30 minutos, independentemente do suporte utilizado para a sua difusão.

Nessa sede, propõe-se, ainda, que as comunicações comerciais e a publicidade de quaisquer eventos em que participem menores, designadamente atividades desportivas, culturais, recreativas ou outras, não possam exibir ou fazer qualquer menção, implícita ou explícita, a marca ou marcas de raspadinhas.

O Projeto de Lei n.º 951/XIV/3.ª, da autoria da Deputada não inscrita Cristina Rodrigues, apresentado a 24 de setembro de 2021, visa incluir uma advertência nos boletins dos jogos sociais quanto ao facto de serem passíveis de criar dependência, à semelhança do que já acontece com as embalagens de tabaco.

Em termos próximos aos da iniciativa do BE, também aqui se propõe que apenas seja possível publicitar este tipo de jogos depois das 22h30 minutos e até às 7 horas, assim como a revogação da norma do art. 21.º-7 do CP que exclui os jogos sociais do Estado da proibição de se fazer publicidade de jogos e apostas a menos de 250 metros em linha reta de escolas ou outras infraestruturas destinadas à frequência de menores.

Na mesma senda, através do Projeto de Lei  n.º 952/XIV/3.ª, de 24 de setembro de 2021, o Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) também propõe, tal como hoje já sucede com as bebidas alcoólicas, a restrição de publicidade a jogos e apostas, na televisão e na rádio, entre as 7 horas e as 22 horas e 30 minutos.

Conforme resulta deste último projeto, as entidades promotoras de jogos e apostas devem passar a ter de disponibilizar um mecanismo que permita a autoexclusão dos respetivos destinatários ou potenciais destinatários, medida atinente a reforçar os direitos e a proteção das pessoas mais vulneráveis a comportamentos aditivos.

O PAN pretende, ainda, que a publicidade passe a ser obrigatoriamente acompanhada de uma advertência para os riscos do uso excessivo do jogo e das apostas, sob a forma de mensagem informativa, e que se clarifique que as limitações legais de publicidade aos jogos e apostas, que atualmente estão consagradas no CP, se aplicam também às raspadinhas.

Ainda que com algumas diferenças entre si, as quatro iniciativas legislativas apresentadas assentam na restrição do horário de emissão de publicidade de jogos, com o fito de contrariar o incremento da sua procura e mitigar os seus efeitos sociais adversos.

A este propósito, cumpre ressalvar que a solução já consta do Manual de Boas Práticas à Publicidade de Jogos e Apostas, aprovado pela Comissão de Jogos, na reunião de 24 de abril de 2020, pese embora seja um instrumento de soft law[3].

Durante a discussão conjunta na generalidade, a 2 de outubro de 2021, o Partido Socialista (PS) defendeu que são necessários “mais estudos sérios e aprofundados, que permitam fazer um diagnóstico exaustivo dos padrões de jogo e de apostas”, sendo que podem “fazer sentido outras alterações ao código da publicidade de âmbito muito mais alargado”. Nessa ocasião, também o Partido Social Democrata (PSD) apelou a que se faça “uma intervenção mais vasta na prevenção e uma aposta de reforço de meios na saúde mental”, considerando que os problemas relativos à adição a jogos e apostas “vão muito além da alteração do código da publicidade”.

Entretanto, as quatro iniciativas legislativas baixaram à Comissão de Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação, para discussão sem votação, por 60 dias, na sequência dos requerimentos apresentados pelos seus autores.

Em face da decisão do Senhor Presidente da República de dissolução da Assembleia da República e de marcação de eleições legislativas antecipadas para 30 de janeiro de 2022, parece que teremos de aguardar eventuais avanços, neste plano, porventura, na próxima legislatura. Por ora, em linguagem de croupier: rien ne va plus, les jeux sont faits.


[1] A raspadinha corresponde à lotaria instantânea, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 314/94, de 23 de dezembro, que autorizou a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) a organizar e explorar, de modo exclusivo, este jogo, cujo Regulamento consta da Portaria n.º 552/2001, de 31 de maio.

[2] Daniela Vilaverde e Pedro Morgado, “Scratching the surface of a neglected threat: huge growth of Instant Lottery in Portugal”, in The Lancet, Volume 7, n.º 3, 2020.

[3] Cfr. Ponto 9 das Recomendações: “Na televisão e na rádio as comunicações comerciais e a publicidade a que se refere o presente artigo não deve ter lugar entre as 7 horas e as 22 horas e 30 minutos (…)”

Squid Game – Uma narrativa sobre escolhas

Doutrina

Esta é a história sobre como, no último mês, uma plataforma de streaming conseguiu a proeza de colocar o mundo de olhos postos numa distopia sul-coreana, rejeitada por várias produtoras, ao longo de uma década[1].

Num total de nove episódios, “Squid Game apresenta concorrentes desesperados, com graves problemas financeiros, numa luta pela sobrevivência, ao longo de várias rondas compostas por jogos infantis mortais. O prémio final deste macabro concurso é de 45,6 mil milhões de wons (cerca de 32 milhões de euros) e só há lugar para um vencedor.

Esta alegoria, que pode ser encarada como uma abordagem crítica ao sistema capitalista, junta violência, sangue e gritaria, temperados com uma pitada de revivalismo, e assenta numa fórmula que, não sendo particularmente inovadora, obteve resultados surpreendentes.

A série, lançada pela Netflix a 17 de setembro de 2021, é já a mais vista na plataforma e mantém-se em primeiro lugar em mais de 80 países, incluindo Portugal.

Os efeitos da nova sensação do momento ultrapassam largamente a ficção. Desde a estreia da série, o modelo branco das sapatilhas clássicas da Vans, semelhante aos usados pelos protagonistas, teve um aumento de vendas na ordem dos 7800% e até a procura pelos famosos doces Dalgona sofreu um crescimento de 250%. Também o Duolingo registou um aumento de 76% nos novos utilizadores que procuram aprender coreano no Reino Unido, através da plataforma[2]. De resto, já aqui nos debruçámos sobre o impacto das produções da Netflix no consumo global, a propósito da série “Queen’s Gambit” (“Gambito de Dama”).

A 12 de outubro, a Netflix anunciava no Twitter que “Squid Game” tinha atingido oficialmente 111 milhões de espectadores em todo o mundo, tornando-se, assim, no seu maior lançamento de sempre. Mas o que explica que este k-drama, a par de tantos outros produtos disponíveis no catálogo, tenha sido visto por esta quantidade de utilizadores, convertendo-se num fenómeno de popularidade global sem precedentes?

Note-se que, neste caso particular, a Netflix não revelou as métricas usadas para chegar aos valores apresentados. Tradicionalmente, a plataforma mede a popularidade das suas séries e filmes contabilizando a quantidade de pessoas que interagiram com o conteúdo durante mais de 2 minutos nos 28 dias após a estreia, o que pode indiciar uma tendência para o inflacionamento destes números.

Ainda que o seu maior trunfo pareça assentar na disponibilização de uma grande quantidade e variedade de conteúdos, ao estilo “All you can eat”, em bom rigor, a Netflix destaca-se dos concorrentes no mercado do streaming por outra caraterística diferenciadora − a capacidade de fornecer sugestões personalizadas, em função dos perfis criados, com base nos dados recolhidos sobre as preferências dos utilizadores, com particular eficácia e precisão[3]. E nunca escondeu ao que veio. Nas palavras do seu CEO, Ted Sarandos”, There’s no such thing as a ‘Netflix show’. Our brand is personalization”.

Para tanto, a plataforma criou um sistema de recomendações, alicerçado num mecanismo de machine learning, que combina algoritmos de filtragem baseada no conteúdo e de filtragem colaborativa (é possível encontrar aqui uma explicação mais completa e detalhada sobre o funcionamento desta ferramenta).

A filtragem baseada em conteúdo recorre à experiência passada do utilizador. Os dados são recolhidos de acordo com as suas interações com a plataforma, revelando o histórico de visualização, as classificações que atribui aos títulos, em que dispositivos visualizou, a que horas e durante quanto tempo, por exemplo.

Para produzir recomendações e personalizar a experiência de um utilizador, estes dados são combinados com outros conjuntos de dados que contêm informações derivadas dos títulos de filmes e televisão oferecidos pela Netflix em todo o mundo, incluindo itens como o seu género, categoria, atores, realizador e ano de lançamento.

Já a filtragem colaborativa envolve o mesmo processo de extração de dados, mas efetua recomendações de acordo com uma combinação ponderada das preferências dos outros utilizadores, imitando, assim, as recomendações.

Numa fase inicial, as recomendações de filtragem colaborativa do sistema limitavam-se aos dados extraídos de utilizadores numa região ou país específico. Agora, as recomendações são retiradas das preferências de visualização dos utilizadores em todo o mundo e os utilizadores são agrupados algoritmicamente em “comunidades”, de acordo com os gostos revelados. Existem, atualmente, mais de 2000 clusters estabelecidos.

Ora, esta poderosa ferramenta de segmentação permite à Netflix conhecer os elementos dominantes nos perfis de consumo e apostar na compra e produção de conteúdos que correspondam exatamente a essas preferências, chegando a fórmulas de entretenimento que, no fundo, consistem em juntar os ingredientes certos.

Como qualquer mecanismo de machine learning, à medida que vamos fornecendo mais dados, através da utilização contínua do serviço, o sistema vai conhecendo mais sobre nós, aprimora-se e afina a personalização de conteúdos, a um nível cada vez mais detalhado e preciso. Nesse sentido, é possível que, através das técnicas de apresentação dos títulos, com base numa complexa combinação de preferências manifestadas, a “máquina” nos empurre para o que vamos consumir a seguir, condicionando previamente as nossas opções, com o benigno propósito de nos facilitar a vida e permitir poupar tempo de pesquisa.

De resto, a própria Netflix explica que para além de escolher os títulos que são incluídos nas faixas na página inicial, o sistema também ordena os títulos dentro da faixa, organizando depois as próprias faixas, recorrendo a algoritmos para proporcionar uma experiência personalizada. Assim, esclarece, “quando vê a sua página inicial da Netflix, os nossos sistemas ordenaram os títulos de um modo concebido para que lhe seja apresentada a sequência que lhe poderá dar mais prazer”, sendo que as faixas com a recomendação mais forte são apresentadas na parte superior e os títulos da esquerda para a direita em cada faixa, a menos que tenham sido selecionados os idiomas árabe ou hebraico no sistema.

Nada é deixado ao acaso. Recentemente, a Netflix passou a personalizar os “thumbnails associados aos filmes e séries. Assim, as imagens em miniatura que identificam e promovem o título mudam frequentemente, considerando uma combinação entre aquilo que o utilizador já viu com os demais títulos apresentados. No fundo, o produto é o mesmo, mas surge aos olhos de cada utilizador de forma distinta, com o propósito de o tornar visualmente mais apelativo, segundo a experiência de consumo de cada um, de forma a captar a sua atenção.

Em fevereiro de 2020, a Netflix introduziu mais um elemento no sistema de recomendações personalizadas à página inicial dos seus utilizadores: o Top 10. A lista, atualizada diariamente, ordena os 10 títulos mais vistos no país. Para além de colocar em evidência os produtos mais populares, esta ferramenta pode servir para os promover durante algum tempo e, assim, manter o ciclo de visualizações. Com efeito, se o utilizador, por mera curiosidade, visualizar o conteúdo destacado no Top 10, por mais de 2 minutos, na contabilidade da Netflix, já é um dos seus espectadores, o que pode contribuir para perpetuar a sua popularidade.

Graças ao manancial de dados que armazena sobre as nossas preferências de consumo, é possível que a Netflix saiba mais sobre os nossos gostos do que nós mesmos. O sistema de recomendação deu a esta plataforma um poder nunca antes experimentado pela indústria do audiovisual: o de prever e influenciar o que vamos ver a seguir, mantendo-nos alegremente numa bolha de consumo de entretenimento, especialmente desenhada para cada um de nós, tornando possível determinar com alguma segurança qual será o próximo hit[4].


[1] Numa entrevista ao The Korea Times, o autor, Hwang Dong-hyuk, revelou que a série, criada em 2008, foi rejeitada por vários estúdios e investidores, ao longo de 10 anos.

[2] A 13 de outubro, o Korean Cultural Center (KCC) nos Emirados Árabes Unidos organizou uma encenação dos jogos da série para duas equipas de 15 participantes, sem violência, em Abu Dhabi. O evento foi visto como uma forma de promoção da cultura sul-coreana. 

[3] Ainda que algumas das suas concorrentes tenham desenvolvido ferramentas semelhantes, a Netflix é a plataforma com maior número de utilizadores e consegue trabalhar com uma maior quantidade de dados sobre a utilização do seu serviço, potenciando, assim, os efeitos da personalização.

[4] Não deixa de ser paradigmático que, numa fase inicial, este serviço se tenha demarcado dos meios tradicionais pela ampla liberdade dada ao utilizador, oferecendo-lhe a possibilidade de ver quando e onde quisesse qualquer um dos muitos títulos disponíveis no catálogo.

25 anos da Lei dos Serviços Públicos Essenciais

Doutrina

Por Carlos Filipe Costa e Sara Fernandes Garcia

No verão de 1996, a Assembleia da República discutiu em conjunto e aprovou dois instrumentos legislativos estruturantes em matéria de Direito do Consumo: a Lei dos Serviços Públicos Essenciais (LSPE) − Lei n.º 23/96, de 26 de julho – e a Lei de Defesa do Consumidor (LDC) − Lei n.º 24/96, de 31 de julho. Os diplomas, que resistiram ao decurso do tempo, com alterações consideráveis pelo caminho, contam com 25 anos de vigência, feito histórico num ramo de Direito pautado por inevitáveis e aceleradas mutações, o que convida à reflexão (o balanço dos 25 anos da LDC pode ser encontrado aqui).

Nos termos do art. 9.º-8 da LDC, “incumbe ao Governo adotar medidas adequadas a assegurar o equilíbrio das relações jurídicas que tenham por objeto bens e serviços essenciais, designadamente água, energia elétrica, gás, telecomunicações e transportes públicos”. Em linha com este desiderato, a LSPE confere tutela juridicamente reforçada aos seus utilizadores por se reconhecer que estes serviços correspondem à satisfação das necessidades mais elementares, que assumem um caráter primordial, na vida corrente.

Com isto em mente, sob a égide do princípio norteador da boa-fé (art. 3.º), a LSPE procura acautelar a posição do utente, figura que não se confunde com a do consumidor. Com efeito, o conceito de utente abrange qualquer pessoa singular ou coletiva, independentemente do fim (profissional ou não profissional) a que se destinam os serviços (públicos essenciais) prestados pelo agente económico (v. art. 1.º-3 da LSPE e art. 2.º-1 da LDC). A proteção consubstancia-se através da imposição aos prestadores de deveres de informação e esclarecimento quanto às características, condições de prestação e preços do serviço (art. 4.º), de obediência a elevados padrões de qualidade na execução contratual (art. 7.º) e de emissão de faturação suficientemente detalhada sobre os valores cobrados (art. 9.º), mas também por via da sujeição da eventual suspensão do serviço a exigentes requisitos formais e procedimentais de que depende a sua licitude (art. 5.º), da proibição de cobrança de consumos mínimos e de quaisquer outras importâncias e/ou taxas que não tenham uma correspondência direta com um encargo em que a entidade prestadora do serviço efetivamente incorra (e.g. aluguer do contador), com exceção da contribuição para o audiovisual (art. 8.º), da consagração de curtos prazos de prescrição e caducidade do direito ao recebimento da contraprestação devida pelo utente (art. 10.º) ou da possibilidade de resolução de litígios através da arbitragem que, neste domínio, assume caráter potestativo, dependendo apenas de opção expressa do utente pessoa singular que seja consumidor (art. 15.º).

Ora, o âmbito objetivo de aplicação do regime aqui em apreço é definido de acordo com uma conceção dominante na sociedade sobre a essencialidade do serviço. Naturalmente, a definição do objeto do diploma (e sua extensão) é historicamente datada e mutável, de acordo com a evolução das necessidades humanas, sofrendo influência da evolução tecnológica.

Não obstante, o art. 1.º-2 da LSPE determina que o regime se aplica a um conjunto de serviços públicos essenciais nele listados. Ainda que, em face do elemento literal, se afigure discutível se estamos perante um elenco taxativo ou meramente exemplificativo, por imperativo de segurança jurídica, não parece de admitir a inclusão e sujeição a este quadro normativo de outros serviços, por via interpretativa.

Na sua versão primitiva, o art. 1.º-2 determinava que, para efeitos de aplicação do regime da LSPE, se encontravam abrangidos os seguintes serviços públicos essenciais: serviço de fornecimento de água [a)], serviço de fornecimento de energia elétrica [b)], serviço de fornecimento de gás [c)] e serviço de telefone [d)]. À época, no âmbito da discussão na generalidade da então Proposta de Lei n.º 17/VII, que decorreu em abril de 1996, a Ministra do Ambiente justificou esta opção: “começou por se atacar um conjunto de bens que nos parecem mais importantes e, através de um inquérito que foi elaborado e devidamente divulgado aos consumidores, estas foram, de facto, as áreas em que os consumidores se sentiam mais debilitados e mais impotentes em relação à máquina empresarial com que se defrontavam: o telefone, a água, a luz e o gás, que são bens absolutamente essenciais. A partir daqui pretendemos que o resultado desta área experimental, mas simultaneamente essencial, se alargue a outros tipos de consumo”.

Nesta versão inicial, o art.13.º-2 da LSPE previa a extensão das suas regras aos serviços de telecomunicações avançadas, bem como aos serviços postais, que deveria ocorrer no prazo de 120 dias, mediante decreto-lei e após audição das entidades representativas dos respetivos setores, o que não sucedeu no tempo previsto. Pelo contrário, entre 1996 e 2004, assistiu-se a uma discussão doutrinal e, sobretudo, jurisprudencial acerca da inclusão (ou não) do serviço de telefone móvel na previsão da alínea d) do n.º 2 do art. 1.º da LSPE[1]. Entre 2004 e 2008, no período compreendido entre a adoção da Lei das Comunicações Eletrónicas (LCE) e a entrada em vigor da primeira alteração à LSPE, promovida pela Lei n.º 12/2008, de 26 de fevereiro, verificou-se mesmo um incompreensível retrocesso na tutela da posição dos utentes de serviços públicos essenciais, com a exclusão do “serviço de telefone” do âmbito objetivo de aplicação da LSPE (art. 127.º-2 da LCE, na sua versão originária).

Esta despromoção dos serviços de telecomunicações da categoria de serviço público essencial refletiu-se, sobretudo, ao nível do prazo prescricional aplicável ao direito da entidade prestadora a exigir o pagamento do preço devido ao utente, em desfavor do direito do consumidor à proteção dos seus interesses económicos (art. 9.º da LDC). Com efeito, desde a entrada em vigor da LCE[2], a 11.02.2004 (art. 128.º-1 da LCE), até 26.05.2008 (art. 4.º da Lei n.º 12/2008), aplicaram-se as normas do Código Civil neste âmbito, concretamente o prazo prescricional de cinco anos previsto na alínea g) do art. 310.º. Ainda assim, nos termos do n.º 1 do art. 297.º do Código Civil e do art. 3.º da Lei n.º 12/2008, aos serviços prestados anteriormente à entrada em vigor da primeira alteração da LSPE, com prazo prescricional em curso, deveria aplicar-se o prazo, mais curto, de seis meses, contado desde o dia 26.05.2008 (e não retroativamente)[3].

Por conseguinte, só na sequência Lei n.º 12/2008 (com origem no Projeto de Lei 263/X/1), o âmbito objetivo de aplicação da LSPE seria significativamente ampliado, passando a abarcar o serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados [c)], os serviços postais [e)], o serviço de recolha e tratamento de águas residuais [f)], os serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos [g)] e, finalmente, o serviço de comunicações eletrónicas [d)], tal como definido pela LCE (incluindo, agora, os serviços de telecomunicações por telefone móvel, bem como os serviços de televisão por cabo e de internet, ao abrigo da alínea ff) do art. 3.º).

O diploma foi, entretanto, revisto pela Lei n.º 24/2008, de 2 de junho, pela Lei n.º 6/2011, de 10 de março, pela Lei n.º 44/2011, de 22 de junho, e, ainda, pela Lei n.º 10/2013, de 28 de janeiro. Porém, apenas em 2019, por via da Lei n.º 51/2019, de 29 de julho (com origem no Projeto de Lei n.º 1093/XIII/4.ª), se promoveu um novo alargamento do elenco de serviços públicos essenciais, passando a nele figurar os “serviços de transportes de passageiros” (alínea h) do n.º 2 do art. 1.º da LSPE).

Volvidos 25 anos desde a aprovação da LSPE, ainda que exaltemos os significativos passos (mais ou menos firmes) que já foram dados em prol do reforço da tutela material e processual dos direitos e interesses do utente e, em particular, do utente consumidor, entendemos que, na presente data, se deve equacionar eventual intervenção legislativa, com vista a introduzir as seguintes alterações[4]:

1) Adoção da fórmula “serviços de interesse económico geral” em detrimento de “serviços públicos essenciais”, em consonância com a designação vigente no Direito da União Europeia (v. arts. 14.º e 106.º-2 do TFUE e art. 36.º da CDFUE) e com a progressiva liberalização e privatização da maior parte dos serviços abrangidos pelo diploma;

2) Alargamento do âmbito objetivo do diploma aos “serviços mínimos bancários“ (de que se tratou aqui) e aos serviços de saúde prestados através do Serviço Nacional de Saúde, mas também por entidades privadas e do setor social, por se considerar que, tendencialmente, devem obedecer às mesmas regras que guiam os serviços de interesse económico geral − prestação de forma ininterrupta (continuidade), em benefício de todos os utentes e em todo o território nacional (universalidade) e com tarifas uniformes e qualidade semelhantes, sem ter em conta situações especiais nem o grau de rentabilidade económica de cada operação individual (igualdade), a que acrescem a transparência e o caráter economicamente acessível do serviço[5];

3) Clarificação da extensão da previsão dos “serviços de transportes de passageiros” constante do elenco do art. 1.º-2 da LSPE, a fim de dissipar quaisquer dúvidas quanto à sua aplicação, sem restrições, a todos os transportes coletivos de passageiros (terrestres, aéreos e marítimos), prestados por operadores públicos e privados;

4) Imposição de adoção de modelos únicos de apresentação da faturação e de nomenclaturas uniformes dos preços e tarifas a refletir nas faturas, ambos a definir por regulamento da entidade reguladora sectorialmente competente, com vista a tornar acessível aos utentes a compreensão da faturação periódica de cada um dos serviços previstos no elenco do art. 1.º-2 da LSPE;

5) Especificação do modo de comunicação a que deve obedecer o envio do pré-aviso de suspensão do fornecimento dos serviços regulados na LSPE (previsto nos n.ºs 2 e 3 do art. 5.º), impondo-se a adoção de uma das seguintes modalidades, em nome da verdade material e para os efeitos previstos no n.º 1 do art. 11.º: carta registada com aviso de receção ou carta registada para o domicílio convencionado, se o houver; mensagem escrita (SMS – Short Message Service), com certificado de comunicação eletrónica, para o número de telefone indicado pelo utente para comunicações da entidade prestadora; mensagem de correio eletrónico (e-mail), com prova de entrega (proof of delivery), para o endereço indicado pelo utente para comunicações da entidade prestadora.



[1] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29.06.2004; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.11.2006.

[2] A LCE revogou o Decreto-Lei n.º 381-A/97, de 30 de dezembro, cujo art. 9.º, n.º 4, previa, em linha com o art. 10.º da LSPE, que “[o] direito a exigir o pagamento do preço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação”.

[3] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15.12.2009; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01.03.2012.

[4] As alterações propostas sob pontos 1), 4) e 5) já foram avançadas, em 2010, por Elionora Cardoso, Os Serviços Públicos Essenciais – a sua problemática no ordenamento jurídico português, Coimbra Editora, pp. 137 e 140-141.

[5] Conclusões do advogado‑geral Dámaso Ruiz‑Jarabo Colomer no Proc. C‑265/08, 54 e 55.

O envio de pré-aviso de interrupção de serviço público essencial como prática comercial desleal

Doutrina

Por Carlos Filipe Costa e Sara Fernandes Garcia

No contexto da pandemia da doença COVID-19, numa fase inicial, foi consagrado um regime excecional vedando a suspensão da prestação dos serviços públicos essenciais de fornecimento de água, energia elétrica e gás natural, “durante o estado de emergência e no mês subsequente”, através do art. 4.º da Lei n.º 7/2020, retificada pela Declaração de Retificação n.º 18/2020. No caso do serviço de comunicações eletrónicas, a proibição de suspensão só seria aplicável se motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20%, ou por infeção por COVID-19, solução já aqui comentada.

Posteriormente, o regime foi atualizado, por via da Lei n.º 18/2020, que prolongou o prazo relativo à proibição, até 30 de setembro de 2020, mas introduziu algumas limitações na proteção conferida aos utentes (v. aqui e aqui).

No âmbito da Lei do Orçamento de Estado para 2021, aprovada pela Lei n.º 75-B/2020, através do art. 361.º, n.º 1, a) a c), a medida extraordinária foi novamente prorrogada, passando a vigorar, durante o primeiro semestre de 2021, com o retorno ao tratamento diferenciado dos serviços de comunicações eletrónicas, como se analisou aqui.

Mais recentemente, foi publicado o Decreto-Lei n.º 56-B/2021, que se ocupa da garantia de acesso aos serviços essenciais, a par da regulação do regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda. O art. 3.º deste diploma, em vigor a partir de 1 de julho, estabelece que, até 31 de dezembro de 2021, não pode ser suspenso o fornecimento dos serviços de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas, sem, contudo, fixar condições de aplicação, optando por uma formulação mais ampla e protetora, com o fito de “debelar os constrangimentos temporários e possibilitar maior liquidez aos cidadãos e às famílias durante o período de normalização de vida”, conforme resulta do preâmbulo.

Neste quadro, perante uma situação típica que, nos termos da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (LSPE) e do regulamento de relações comerciais do respetivo setor, possa determinar a interrupção do fornecimento destes serviços essenciais, deve a suspensão ser precedida de “pré-aviso adequado” por não se fundar em “caso fortuito ou de força maior” (art. 5.º-1 da LSPE). A questão que colocamos é a seguinte: pode o comercializador ou a entidade gestora enviar o pré-aviso ao utente durante o período em que vigora a proibição de suspensão, ainda que este só venha a produzir efeitos em data ulterior?

A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), em memorando intitulado “Nota Interpretativa do regime de interrupção de fornecimento por facto imputável ao cliente”, depois de assinalar a ausência de solução legislativa quanto à (in)admissibilidade do envio de pré-aviso de interrupção ao utente, tomou posição no sentido de que “(…) nada inibe os comercializadores de enviar aos seus consumidores os respetivos pré-avisos, desde que respeite o disposto na lei e em regulamento, designadamente a data a partir da qual pode ocorrer a interrupção”.

De acordo com a perspetiva da ERSE, em caso de falta de pagamento dos montantes devidos no prazo estipulado (mora do utente), se o comercializador tivesse exigido a prestação pecuniária devida pelos serviços prestados em janeiro, através de fatura comunicada ao utente a 3.2.2021, sem que tivesse ocorrido o pagamento até 22.2.2021 (arts. 10.º-3 da LPSE e 66.º-1 do RRCSEG), podia emitir, de imediato, o pré-aviso de interrupção do fornecimento de energia elétrica (ou de gás natural) ao cliente, ainda que a suspensão só pudesse ter lugar, forçosamente, em data posterior à proibição de suspensão.

O regime de proibição da suspensão que vem sendo sucessivamente prorrogado não constitui uma consagração da “teoria do limite do sacrifício”, não bastando que a prestação se tenha tornado extraordinariamente onerosa ou excessivamente difícil para o devedor se exonerar do cumprimento. Não funciona também como uma moratória legal facultada ao utente para regularização das prestações que, entretanto, já se venceram. O regime não teve em vista a promoção do incumprimento, pelos utentes, dos contratos de prestação dos serviços públicos essenciais, o que, de resto, atentaria, de modo ostensivo, contra o princípio fundamental estruturante do nosso Direito dos Contratos contido no brocardo latino pacta sunt servanda (art. 406.º-1 do Código Civil).

Ainda assim, afigura-se incontornável que, com a adoção desta solução normativa de caráter excecional, o legislador, colocando em confronto os interesses do cumprimento pontual dos contratos e da continuidade da prestação dos serviços, fez pender os pratos da balança para a preponderância da essencialidade do fornecimento permanente dos serviços de interesse económico geral em causa, porque tendentes à satisfação de necessidades primaciais na vida de qualquer cidadão, particularmente num período pautado pelo recolhimento domiciliário.

Acresce que, embora uma interrupção de um daqueles serviços por mora no pagamento não permita a imediata resolução do contrato por parte do comercializador ou da entidade gestora (arts. 83.º-1 do RRCSEG e art. 79.º-4 do RRCSAR), certo é que o pré-aviso, previsto no art. 5.º-1 a 3 da LSPE se traduz numa intimação para o cumprimento, mediante concessão de um prazo perentório − não inferior a 20 dias − para regularização do valor em dívida, sob cominação de suspensão do abastecimento.

Assim, à semelhança do que sucede com a interpelação admonitória, prevista no art. 808.º-1-2.ª parte do Código Civil, também o pré-aviso cumpre uma função de injunção cominatória para cumprimento da prestação. Ora, esse desiderato só se produz eficazmente com a concessão de um prazo que, embora suficiente para o utente “desassorear e remover os obstáculos que estão a impedir o cabal e perfeito cumprimento do contrato”[1], inculque a ideia de que o fornecedor não suportará a situação de inadimplência por muito mais tempo.

Daí que, no quadro do relacionamento comercial habitualmente mantido entre comercializadores (ou entidades gestoras) e clientes (ou utilizadores), os pré-avisos de interrupção do fornecimento dos serviços essenciais não sejam remetidos com uma antecedência muito superior à mínima legal ou regulamentarmente exigida face à data em que a suspensão se poderá concretizar (caso subsista a razão fundante), o que permite manter a sua atualidade, primordial no desempenho da sua função.

Neste seguimento, um utente menos atento ao regime excecional vigente, mesmo enfrentando dificuldades no cumprimento, em face de um pré-aviso de interrupção de fornecimento que chegue ao seu conhecimento, poder-se-á sentir condicionado a oferecer, a breve trecho, o pagamento integral do preço, dada a ameaça de perda de acesso ao serviço essencial no seu local de consumo. De resto, a probabilidade de tal suceder agudizar-se-ia perante uma sucessão de pré-avisos de suspensão de fornecimento, ainda que emitidos com base em fundamento normativamente legitimante, considerando o efeito negativo que tais comunicações têm na gestão da vida pessoal e familiar de qualquer utente.

Por quanto se expôs, entendemos que a emissão de pré-aviso de suspensão de fornecimento dos serviços essenciais de fornecimento de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas, em data que supere, em larga medida, a antecedência legal ou regularmente imposta, é suscetível de configurar uma prática comercial desleal, na modalidade de prática agressiva, nos termos dos arts. 3.º-a) a d), j) e l), 6.º-b), e 11.º-1 e 2-a) e c) do Decreto-Lei n.º 57/2008.

Com efeito, a emissão do pré-aviso nestes moldes pode exercer uma influência indevida sobre o consumidor, suscetível de limitar, de modo significativo, o seu comportamento e conduzir à adoção de decisão de transação que, de outro modo, não teria tomado, a qual, neste caso, se traduz no pagamento imediato do valor ou de parte do valor em dívida[2].

Esta conduta por parte do profissional, assente na exploração de uma posição de poder, é capaz de criar no espírito do consumidor a ideia de que deve proceder de imediato à regularização dos pagamentos, de forma a evitar consequências negativas, o que restringe consideravelmente a sua capacidade de tomar uma decisão livre.

Ainda que se sustente que se trata de adiantar uma informação relativa a uma situação de incumprimento já consumada, que leva o utente a antecipar o pagamento devido e que provavelmente teria lugar no futuro, importa recordar que este regime de exceção visa precisamente assegurar a continuidade da prestação destes serviços públicos essenciais, permitindo ultrapassar, ainda que temporariamente, problemas de liquidez, lógica que ficaria subvertida com a adoção desta prática, constituindo eventualmente uma forma de fraude à lei.


[1] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.2015.

[2] A “decisão de transação” está associada, em regra, à decisão tomada por um consumidor sobre a aquisição de bens ou serviços. Porém, de acordo com as Orientações sobre a aplicação da Diretiva relativa às práticas comerciais desleais, SWD (2016) 163 final, de 25.5.2016, pp. 39-40, a noção adotada é bastante lata, abrangendo decisões prévias e posteriores à compra. Atendendo ao espírito de completude inerente a esta Diretiva-quadro, defendemos que a decisão de pagamento de uma dívida, num contrato de execução duradoura em que o consumidor realiza a contraprestação pecuniária periodicamente, é enquadrável no conceito amplo de decisão de transação, para efeitos de aplicação do regime.