Aborto: o preconceito que bloqueia o uso do misoprostol

Droga é eficaz e segura, e tem efeitos colaterais raros e leves. Mas resolução da Anvisa restringe seu uso – inclusive em casos autorizados em lei – e veda procedimento domiciliar. Brasil segue na contramão das evidências científicas

Ilustração: Ana Persona
.

Na última semana, diante do risco de um retrocesso nos Estados Unidos, multiplicaram-se os posicionamentos – inclusive da comunidade científica e médica internacional – a favor da garantia, por parte dos Estados, do direito à interrupção segura da gravidez. No Brasil, a onda conservadora também se esforça para atrasar o acesso a este direito. Uma resolução publicada em fevereiro deste ano pela Anvisa, por exemplo, aumentou a dificuldade de acesso ao aborto, inclusive para os casos previstos em lei – que já não são atendidos propriamente. É o que aponta a nota técnica Para garantir o acesso ao misoprostol no Brasil, publicada na coletânea Aborto Seguro – Pelo Direito de Dedicir, da Rede Médica pelo Direito de Decidir – Doctors For Choice Brasil, lançada no final de abril. 

A Resolução RDC nº 598 impôs uma condição ainda mais restritiva de acesso aos medicamentos que pertencem à classe C1 – sujeitos a controle especial, prescritos em duas vias, com retenção de uma delas pela farmácia. Entre esses fármacos está o misoprostol, popularmente conhecido como Cytotec. Ele é utilizado no Brasil para o tratamento ambulatorial do aborto, apesar da burocracia enfrentada pelas unidades de saúde para adquiri-lo, armazená-lo e distribui-lo. Hoje, a lei brasileira permite a interrupção da gravidez apenas em casos de estupro, anencefalia fetal ou em caso de risco de vida para a mulher.

“Os protocolos mais restritivos vigentes no Brasil para o acesso ao misoprostol estão em descompasso com as evidências científicas disponíveis”, escreve Cristião Fernando Rosas, coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir, na nota técnica. Segundo um estudo publicado no Journal of Public Health Policy (EUA) em 2012, que analisou países da África, Ásia e América Latina, o Brasil era um dos países que possuiam maior restrição ao aborto farmacológico no mundo. Em 2017, uma atualização do estudo analisou os países da América do Sul e constatou que o Brasil é o único que não disponibiliza o misoprostol diretamente às mulheres. 

Segurança e eficácia comprovadas 

A lei brasileira que restringe o medicamento é de 1998, quando ainda não existiam evidências suficientes sobre sua segurança. O maior ensaio clínico para avaliar a eficácia e segurança do misoprostol na interrupção da gravidez foi realizado pelo Research Group on Postovulatory Methods of Fertility Regulation, da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2007. Os eventos adversos relatados foram dor, diarreia, febre ou calafrios, mas em apenas 0,04% dos casos houve sangramento vaginal com necessidade de retorno ao hospital por precaução. Não houve nenhum evento adverso sério. 

O misoprostol também é muito seguro para uso doméstico. Em 2015,  uma pesquisa publicada na Archives of Gynecology and Obstetrics demonstrou não haver diferença na eficácia entre o tratamento feito com internação e em casa: ambos ficaram acima de 85%. Tampouco houve eventos adversos importantes nos dois grupos.

A OMS recomenda desde 2013 o uso domiciliar seguro e eficaz do misoprostol. Em 2018, em seu principal guia sobre o aborto, Medical management of abortion, a organização concluiu que o aborto medicamentoso no início da gravidez pode ser realizado em unidades de atenção primária à saúde e atendimento ambulatorial, com a finalidade de ampliar o acesso à assistência. Um ano depois, a indicação de necessidade de supervisão especializada para a administração do medicamento foi derrubada.

Ativismo antidireitos dentro da Anvisa

“As barreiras para o acesso ao medicamento e às informações sobre seu uso não conseguem reduzir a sua utilização […] mas alimentam o mercado clandestino, fazendo com que mulheres recorram a medicamentos não regulamentados, muitas vezes falsificados ou de qualidade duvidosa, colocando em risco a sua vida e saúde”, alerta o documento da Rede Médica pelo Direito a Decidir. 

Em um país em que a mortalidade materna é de 60 por 100 mil nascidos vivos, a Pesquisa Nacional de Aborto de 2016 revelou que, entre 2013 e 2015, dos 68 serviços brasileiros de referência para aborto previsto em lei apenas 37 (54,4%) realizavam o procedimento. Os autores pontuaram que os principais obstáculos eram a falta de conhecimento sobre a legislação e o conservadorismo de profissionais de saúde.

Em um cenário desfavorável para as mulheres, especialmente as periféricas e mais vulneráveis, a portaria da Anvisa irá aumentar a negligência dos atendimentos e o acesso a tratamentos ambulatoriais seguros. “No atual momento político do Brasil, verificamos que ações conservadoras e reacionárias têm ganhado força dentro do espaço público de poder”, escreveu Cristião. “Com a emissão de normativas e portarias, tal ativismo antidireitos do Estado brasileiro vem impactando negativamente nos direitos sexuais e reprodutivos de meninas e mulheres brasileiras”, concluiu.

Leia Também: