As duas maiores petroleiras em atuação no Brasil, Petrobras e Shell, patrocinam conteúdos sobre "transição energética" de ao menos cinco grandes influenciadores brasileiros de ciência nas redes sociais, na tentativa de associar as próprias imagens ao combate às mudanças climáticas – quando, na verdade, continuam expandindo a produção petrolífera no país.
De acordo com levantamento do Núcleo, ao menos 34 posts publicados nas redes de Shell e Petrobras com influencers de ciência entre dez.2023 e out.2024 superaram as 49 milhões de visualizações na somatória total no Instagram, no TikTok e no YouTube.
Além do divulgador Átila Iamarino, Ana Bonassa e Laura Marise (Nunca Vi 1 Cientista), Bianca Witzel, Iberê Thenório (Manual do Mundo) e Pedro Loos (Ciência Todo Dia) também publicaram parcerias nos perfis oficiais das petroleiras.
Atualmente, o setor brasileiro de energia fóssil prevê produções recordes até 2030, o que vai na contramão das metas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU). A expectativa da indústria é abrir novos poços e aumentar a extração de petróleo no país em cerca de 80% até 2030, em comparação com os níveis de 2023.
É ✷ importante ✷ porque...
Petrobras e Shell usam influencers de ciência para "marketing verde" sobre transição energética, enquanto investem pesado em petróleo
Marketing baseado em "negacionismo soft" tenta projetar petroleiras como "solução" para a crise climática, ainda que elas sejam as principais agentes do problema
Enquanto isso, o IPCC diz que o mundo têm a mesma data limite de 2030 para cortar emissões de gases do efeito estufa pela metade, assim como impedir o aumento da temperatura média do planeta para além do limiar de 1,5 C° acima de níveis pré-industriais previstos pelo Acordo de Paris. O pacto global também prevê um teto máximo de 2 C°, limite a partir do qual os impactos climáticos seriam ainda piores.
"A ciência é clara: temos de acabar com a exploração de petróleo e o desmatamento o mais rápido possível se quisermos estabilizar o aumento da temperatura em até dois graus", alerta o físico Paulo Artaxo, professor da Universidade de São Paulo (USP) e membro do IPCC. "Com as emissões atuais, chegaremos aos três graus ao longo deste século", diz.
Em seu recente plano de negócios, a Petrobras previu mais investimentos para explorar novos poços (U$ 7,5 bilhões) do que para energias renováveis (U$ 7 bi), embora os conteúdos analisados pela reportagem ressaltem como a petroleira protagoniza uma "transição energética justa". Na mesma linha, a Shell tem enfraquecido suas metas de redução de emissões e desistido de cortes em sua produção de petróleo.
Leia a íntegra da resposta da Shell ao Núcleo
A Shell esclarece que, em outubro, lançou a segunda fase de sua campanha corporativa “Caminhos do Amanhã”, que procura estimular a reflexão sobre o futuro da energia, incluindo os aspectos de segurança e eficiência energética num mundo em transição.
O biólogo e influenciador Atila Iamarino desenvolveu conteúdo para a campanha, destacando o caminho para uma economia de baixo carbono, além de como a matriz energética brasileira já é majoritariamente limpa e como podemos contribuir ainda mais para a transição, ressaltando que petróleo e gás ainda serão relevantes na matriz energética brasileira e global nas próximas décadas.
A Shell está comprometida com uma transição energética segura, acessível e eficiente, e possui a ambição global de zerar suas emissões líquidas até 2050. A empresa entende o papel do óleo e gás para assegurar o fornecimento da energia que o mundo precisa hoje enquanto buscamos descarbonizar os sistemas de energia do futuro.
Leia a íntegra da resposta da Petrobras ao Núcleo
A petroleira não respondeu nossas dúvidas no prazo e se limitou a enviar um link para uma página de seu site.
Olá Pedro,
Boa tarde!
Estamos tentando uma resposta oficial para sua demanda, se for possível aguardar ficaremos agradecidos.
Do contrário, pode usar o que está ai nesse site, quando tivermos a resposta oficial, enviaremos.
Mudanças Climáticas: temos um dever com o planeta | Petrobras
Obrigado!
Petroleiras buscam preservar mercado do petróleo
Conforme a análise do Núcleo, a publi mais vista foi de Pedro Loos, que promoveu uma corrida de "eficiência energética" promovida pela Shell no Instagram que alcançou 12,5 milhões de views até 29.out.2024.
Já o canal com conteúdo patrocinado mais frequente foi o Nunca Vi 1 Cientista, com 23 vídeos publicados – considerando que o perfil fez uma parceria para apresentar um podcast da Petrobras, que teve trechos replicados no TikTok, no YouTube e no Instagram.
No geral, os materiais variam entre desde um minidocumentário sobre como funciona a extração de combustíveis fósseis na floresta amazônica publicado pelo Manual do Mundo, que inclui explicações sobre como essa exploração é feita de forma "sustentável", até conteúdos que explicam de onde vem o petróleo e como ele seria produzido de forma "segura e confiável" no Brasil, publicados por Átila Iamarino.
"A indústria do petróleo fala muito em energias renováveis, mas nunca se viu tanta emissão fóssil em um único ano", ressalta o físico Alexandre Costa, professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE), lembrando que 2023 bateu recordes no acúmulo de gases do efeito estufa.
No fundo, o objetivo estratégico é preservar a exploração de combustíveis fósseis e as atividades que continuam mantendo as emissões elevadas.
– Alexandre Costa, da UECE
Em 11.dez.2023, Loos estrelou um anúncio pago pela Shell nas redes da Meta em que trata a petroleira como uma "empresa de energia" e sugere que o etanol seria um dos principais investimentos dela (Reprodução: Biblioteca de Anúncios do Facebook)
ETANOL E TRANSIÇÃO. Em uma das publis revisadas pela reportagem, o influencer de ciência Pedro Loos, do Ciência Todo Dia, leu um texto que trata a petroleira Shell como uma "empresa de energia" que estaria investindo em "soluções" como o etanol.
Em outro vídeo da multinacional no Instagram, o biólogo Átila Iamarino afirma que o petróleo "se tornou central na vida moderna", que uma transição para outras fontes energéticas é desafiadora e que o Brasil já tem uma matriz energética suficientemente limpa (isso depende de como você lê os dados). A legenda do post diz que "é importante continuar investindo na energia do hoje".
Embora os comentários dos influenciadores não sejam falsos, eles deixam de fora um contexto importante sobre como a empresa ainda está profundamente entrelaçada com a extração de petróleo, inclusive planejando investir cerca de quatro vezes mais na produção de óleo e gás do que em produtos de baixa emissão de carbono até 2035.
Nem Loos ou Iamarino responderam aos e-mails enviados pela reportagem, assim como a influencer Bianca Witzel.
"As petroleiras tentam se posicionar como 'empresas de energia' se preparando para a saída de cena do petróleo, mas fazem isso no ritmo delas e não no que a ciência coloca como urgente", diz o especialista em gestão ambiental Ilan Zugman, diretor da 350.org, ONG focada em transição energética justa.
Para elas [empresas de petróleo], é tranquilo que a transição vá até 2050, 2060, mas o planeta não tem 40 anos para esperar
– Ilan Zugman, da 350.org
Procurada pelo Núcleo, a Shell não respondeu qual o volume de sua produção de etanol no país comparada à de petróleo, de modo a justificar a ênfase no combustível renovável em suas publis. "A Shell está comprometida com uma transição energética segura, acessível e eficiente, e possui a ambição global de zerar suas emissões líquidas até 2050", disse a petroleira em nota.
Já a Petrobras se limitou a enviar um link com uma página chamada "Mudanças Climáticas: temos um dever com o planeta", onde descreve ações de sustentabilidade.
Em palestra realizada em 24.out.2024, a diretora-executiva de Exploração e Produção da estatal, Sylvia Anjos, espalhou desinformação ao dizer que os "grandes dois fatores" que importam para o aquecimento global são o Sol e a posição da Terra, revelou o site O Eco.
Negacionismo soft
Segundo Costa, o uso de influencers de ciência pela indústria do petróleo é uma "repaginação" do negacionismo climático que o setor impulsionou a partir dos anos 70 para tentar contestar dados científicos sobre o aquecimento global usando cientistas vinculados a instituições de pesquisa.
Se você tem uma campanha publicitária não voltada para agradar a bolha extremista que já é contra a ação climática, eles vão incidir no outro lado do tabuleiro fazendo com que nós, no lugar de construir um contraponto forte, poderoso, minimamente unificado, e que questione métricas de crescimento econômico indefinido, no lugar de ter isso, pensam em minar essa unidade e sabotar a ciência do clima, atacá-la onde ela tem escuta. Por isso, esse negacionismo soft pode até ser mais perigoso hoje.
– Alexandre Costa, UECE
"O discurso hoje é light, essas empresas não negam mais as mudanças climáticas e, pelo contrário, elas posam de preocupadas com isso", afirma o físico da UECE. "E para dar credibilidade ao greenwashing, elas usam divulgadores científicos para dizer que são a favor da ciência", explica.
PETROLEIRA DIVULGANDO CIÊNCIA? Uma das iniciativas mapeadas pela reportagem foi o podcast Nossa Energia, mantido pela Petrobras, que contratou as influencers Ana Bonassa e Laura Marise, do canal Nunca Vi 1 Cientista, para apresentá-lo.
O objetivo do programa é "conversar com especialistas do Brasil sobre temas que vão desde a própria divulgação científica, passando pelo mundo nerd e fofocas científicas, até temas importantíssimos como a transição energética justa", segundo o post que anunciou a parceria no Instagram.
Para Zugman, esse tipo de marketing tenta convencer o mundo de que "o setor do petróleo não é o problema, e sim parte da solução" para a crise climática. "Uma das táticas é patrocinar eventos conectados a ciência, como feiras e museus", diz o diretor da 350.org.
O que dizem os divulgadores
À reportagem, o jornalista e influencer de ciência do Manual do Mundo, Iberê Thenório, disse que a Petrobras "tem um papel estratégico no desenvolvimento econômico e tecnológico do país", admitiu estar preocupado com os "impactos ambientais" do uso de combustíveis fósseis e explicou que trabalhar com a estatal partiu de uma iniciativa própria de seu canal.
"É importante destacar que, para países como o Brasil, que têm uma infraestrutura energética ainda em transição, empresas como a Petrobras continuam sendo essenciais para viabilizar essa mudança", afirmou Thenório.
Já Ana Bonassa e Laura Marise, do Nunca Vi 1 Cientista, disseram à reportagem que receberam um convite da Petrobras "para que as duas fossem anfitriãs de um programa de entrevista sobre ciência atrelado à tecnologia, um espaço para se discutir diversos assuntos deste universo, e assim foi feito".
Leia o que disse o Nunca Vi 1 Cientista ao Núcleo
Para Ana Bonassa e Laura Marise, criadoras do canal Nunca Vi 1 Cientista, o convite para estar à frente de um podcast focado em ciência e tecnologia foi uma oportunidade que representou a afirmação do potencial das mulheres como protagonistas na construção e disseminação de conhecimento científico, em um cenário historicamente dominado por homens, especialmente quando o tema é ciência.
O Convite feito pela Petrobras foi para que as duas fossem anfitriãs de um programa de entrevista sobre ciência atrelado à tecnologia, um espaço para se discutir diversos assuntos deste universo, e assim foi feito. Reforçando ainda mais esse discurso, o último episódio postado do podcast foi sobre “Mulheres na Ciência”, um programa todo de mulheres para falar sobre os avanços conquistados por elas no mundo da ciência.
Leia o que disse o Manual do Mundo ao Núcleo
Olá, Pedro! Tudo joia? Aqui é o Iberê Thenório.
Fico muito feliz que você tenha entrado em contato e esteja fazendo Jornalismo de qualidade.
Antes de tudo, é importante dizer que fomos nós que escolhemos trabalhar com a Petrobras. Em 2020, nos inscrevemos no programa de patrocínio deles por acreditarmos que é uma empresa de extrema importância para o desenvolvimento do nosso país, que nos enche de orgulho assim como a Embraer, a Embrapa ou o Butantan.
Você reflete sobre o conceito de "greenwashing" ao aceitar parcerias que mencionem ações de descarbonização ou sustentabilidade? Como você evita a veiculação de mensagens que eventualmente possam estar enviesadas em favor do patrocinador e conflitar com o que cientistas do clima dizem?
Sim, essa é uma das nossas maiores preocupações. Não só na área ambiental, mas também em mensagens que falem de projetos sociais, científicos ou tecnológicos. Recebemos dezenas de mensagens diariamente de empresas que nos procuram para anunciar no canal, mas poucas passam pelo nosso critério de seleção. Há um trabalho imenso, que não é visto pelo público, para entendermos se esses anúncios correspondem à realidade e se não geram conflitos com nossos princípios. Ao longo dos nossos 16 anos de trabalho, acredito que conseguimos evitar qualquer mensagem contrária à ciência.
Como você responderia a críticas de que sua imagem e popularidade no nicho de ciência estão sendo usadas para melhorar a percepção pública de modelos de negócio ambientalmente insustentáveis, como o comércio de combustíveis fósseis?
A Petrobras tem um papel estratégico no desenvolvimento econômico e tecnológico do país, com iniciativas que impactam diretamente a infraestrutura nacional, a geração de empregos e a soberania energética.
Entendo que há uma discussão urgente sobre impactos ambientais do uso de combustíveis fósseis, e compartilho dessas preocupações. Mas é importante destacar que, para países como o Brasil, que têm uma infraestrutura energética ainda em transição, empresas como a Petrobras continuam sendo essenciais para viabilizar essa mudança.
A Petrobras apresentou evidências concretas de iniciativas sustentáveis? Você chegou a pesar o discurso corporativo da empresa a respeito de transição energética em contraponto com o que dizem cientistas do clima sobre as práticas da Petrobras, em particular seus esforços pela abertura de novos poços de petróleo na Margem Equatorial?
Tudo o que tratamos em nossos vídeos é extensamente documentado ou pode ser visto in loco, como é o caso do reflorestamento que mostramos na base de Urucu, onde a Petrobras realiza um trabalho notável de recomposição florestal, diferenciado em relação a outros grandes projetos na Amazônia.
Em relação à exploração da margem equatorial, é algo que não foi tratado em nossos vídeos.
Como você equilibra a necessidade de financiamento, renda e parcerias com a preservação da integridade do seu conteúdo científico? Como você encara a possibilidade de conflitos de interesses?
Temos critérios rigorosos para selecionar nossos parceiros comerciais e só trabalhamos com empresas que respeitam nosso posicionamento editorial. No caso da Petrobras, a parceria é tranquila, pois é uma companhia que reconhece o desafio das mudanças climáticas e não interfere no conteúdo que produzimos. Um exemplo claro disso é um vídeo recente em que apresentamos um ranking das fontes de energia mais poluentes (referência abaixo), no qual os derivados de petróleo ocupam as piores posições. Isso demonstra que nossa parceria com a Petrobras não compromete nosso compromisso em fornecer informações corretas e objetivas ao público.
Trecho do vídeo sobre energias mais poluentes
https://youtu.be/oW0Hi3g0vaY?list=PLYjrJH3e_wDPqFJ3_ilbcnQ4VqyyCvY-E&t=399
Atenciosamente,
Iberê